Histórias não
contadas O Selo Histórias Não Contadas da Autonomia Literária é, sem dúvida, o
espaço dedicado às narrativas malditas, ocultadas pelas fontes oficiais ou
simplesmente ignoradas na arena da conflituosa sociedade global. Para tanto,
recorremos ao trabalho de jornalistas investigativos, testemunhas oculares das
histórias e pesquisadores desses eventos. Aqui, nosso objetivo é ajudar a
desmontar mitos e superstições sobre fatos e figuras em destaque na mídia
global trazendo-os à luz do debate público. Na era da informação total, vivemos
sob a ditadura das versões e pontos de vista oficiais, a qual nos dá uma visão
cômoda e nem sempre verdadeira do nosso tempo. É preciso, pois, realizar um
esforço radical: encontrar e publicar os testemunhos desses insiders, pois a
cura de muitos males demanda apenas a luz do Sol.
cidades e campos de petróleo no Iraque e na síria
Fonte: BBC
zonas de atividade do estado islâmico
fonte: BBC
Prefácio: Os 100 diasx
Apresentação:
UMA Serpente
ENTRE AS PEDRAS –
PATRICK COCKBURN -
Reginaldo Nasser
Pelas lentes da mídia ocidental, o Estado
Islâmico (isis) aparece como um grupo irracional que age sem motivos políticos,
movido apenas pelo ódio religioso. As imagens de vídeos com requintes técnicos
e estéticos produzidos pelos próprios militantes decapitando reféns são narradas,
à exaustão, pelos meios de comunicação como sendo combatentes furiosos que não
poupam mulheres ou crianças. Construiu-se uma imagem no Ocidente, desde o
início da década de 1990, e que se intensifica atualmente, que esses jihadistas
são capazes de fazer as piores atrocidades. Evoca-se, no imaginário do
Ocidente, semelhanças com um passado longínquo, associando-os às “tribos
bárbaras” que varreram o Império Romano ou às hordas mongóis de Gengis Khan que
devastaram cidades inteiras, massacrando seus habitantes como se estivéssemos
diante de um choque de civilizações. Em curto espaço de tempo, o isis destronou
aquela que, até então, era considerada a maior ameaça à segurança
internacional, responsável pelos atentados terroristas no dia 11 de setembro de
2001. O grupo Al-Qaeda já era coisa do passado. O impacto desse fenômeno sobre
a comunidade internacional foi devastador. Nos Estados Unidos, Canadá, Europa e
até mesmo no Brasil, começou-se a especular sobre a possibilidade da existência
de células do grupo, cooptando jovens ou mesmo planejando ataques terroristas.
Um dos autores do atentado ao semanário Charlie Hebdo, em 2014, em Paris, revelou
com orgulho o pertencimento ao grupo. Em vídeo, que teve ampla circulação pelas
redes sociais, um jovem canadense aparece rasgando seu passaporte, fazendo
ameaças, em inglês, e depois, em árabe: “[Esta] é uma mensagem aos poderes do
Canadá e da América. Estamos chegando, e vamos destruí-los”. Mas, afinal de
contas, quem são esses terroristas que conseguiram, de forma inédita, unir
Estados Unidos e Irã, adversários de longa data, sem ter um único aliado no
cenário internacional? Apesar de realmente usar táticas cruéis, próprias de um
grupo terrorista, como conseguem a adesão voluntária de milhares de jovens
europeus? Como foi possível ocupar um território de tamanho equivalente à
Jordânia, com cerca de oito milhões de pessoas, incorporando partes significativas
da Síria e do Iraque? Pois bem, é a ascensão desse novo ator numa complexa rede
de conexões com atores internacionais (Estados Unidos, França e Grã- Bretanha)
e regionais (Arábia Saudita, Turquia e Paquistão), bem como seus impactos
políticos, sociais e humanitários no xadrez geopolítico do Grande Oriente
Médio, que PatrickCockburn, um dos mais credenciados jornalistas na região, ao
lado de Robert Fisk, se esmera em explicar em linguagem clara e objetiva.
Pode-se dizer que PatrickCockburn mantém vivo o legado de seu pai, o lendário
jornalista Claud Cockburn, que sugeria que a única forma de um correspondente
internacional fazer seu trabalho, com dignidade, era repetir continuamente a
pergunta: “Por que esses bastardos estão mentindo para mim?”. Cockburn examina
os caminhos dos diversos atores no Oriente Médio com uma lupa, indo aos mínimos
detalhes, mas sem deixar o fracasso da “Guerra ao Terror” e a ascensão
JiHadisTa de conjugar essas informações
com uma visão mais ampla do processo histórico em que as grandes potências e os
poderes regionais imprimem sua marca. Em certos trechos da obra temos a
impressão de que se trata de um livro de história, em outros, de um romance
histórico e, algumas vezes, nota-se até mesmo a linguagem do pesquisador
acadêmico preocupado com a adequação dos conceitos. Conhecedor como poucos da
região, Patrick Cockburn fez dezenas de viagens à Síria e ao Iraque, durante os
últimos vinte anos, recolhendo informações extremamente persuasivas que ganham
um colorido especial por meio de relatos de diálogos e entrevistas com oficiais
da inteligência, jornalistas e, principalmente, com os homens e mulheres que
vivem o cotidiano da violência. O líder do isis, Abu Bakr al-Baghdadi,
descreveu a estratégia militar de seu grupo como “uma serpente que se move
entre as pedras” usando suas forças como tropas de assalto quando se trata de
atingir alvos considerados frágeis, mas evitando se atolar em batalhas
prolongadas quando a correlação de forças se equilibra. Creio que o trabalho
meticuloso de Cockburn é acompanhar a serpente desde seu nascimento, desvendar
quem a alimenta, como ela se move e quais são as condições do ambiente que
permite com que se fortaleça e se prolifere. Assim como outros jornalistas e analistas
internacionais, Cockburn não foge à regra ao usar o termo jihadismo para
relacionar essa ideologia às ações dos grupos terroristas islâmicos, em geral,
e ao isis em particular. Embora não comprometa significativamente sua rica
análise sobre o isis, creio que, por vezes, o uso indiscriminado do termo
permite leituras menos atentas às especificidades dos grupos que a utilizam, o
que acaba por atribuir à religião um peso maior do que realmente possui nas
ações violentas. A palavra árabe “jihad” é muitas vezes traduzida como “guerra
santa”, mas, em um sentido puramente linguístico, a palavra significa luta ou
esforço. Em sentido religioso, como descrito pelo Alcorão, “jihad” tem muitos
significados. Pode se referir aos esforços pessoais para ser um bom muçulmano
ou crente, bem como o trabalho para informar as pessoas sobre a fé no Islã.
Assim, é preciso considerar a interpretação e o uso arbitrário que os
diferentes grupos islâmicos fazem do conceito de jihad. Importante notar que
Cockburn alerta para o fato de que a ideologia da Al-Qaeda e do isis é uma
interpretação extremada do wahabismo, a ideologia oficial do Estado saudita,
uma versão fundamentalista do Islã, nascida no século xviii, que enxerga os
xiitas e sulistas como não muçulmanos que devem ser perseguidos assim como
cristãos e judeus. Os maiores responsáveis pela difusão do wahabismo no mundo
são os países árabes aliados dos governos ocidentais: Arábia Saudita, Catar e
Emirados Árabes. Citando uma autoridade em questões islâmicas, Cockburn vai
direto ao ponto: “Se você quiser fundar um seminário ou mesquita em qualquer
lugar do mundo, não há muitos locais fora da Arábia Saudita em que possa obter
30 mil dólares”. Se a mesma pessoa desejar opor-se ao wahabismo, será uma luta
ingrata. Aliás, o controverso papel da Arábia Saudita na política do Oriente
Médio é um dos temas principais perseguidos por Cockburn em todo o livro. O
jornalista chega a afirmar que o jihadismo não será derrotado se os Estados
Unidos e seus aliados não atuarem de forma decidida contra a influência que têm
na promoção do extremismo islâmico. De um lado, a política saudita age por dois
motivos contraditórios diante dos jihadistas: medo o fracasso da “Guerra ao
Terror” e a ascensão JiHadisTa de que
operem na própria Arábia Saudita e desejo de usá-los contra os poderes xiitas
no exterior. Os Estados Unidos também agem de modo contraditório em relação à
Arábia Saudita: medo do suporte financeiro e político que dão aos jihadistas e
crença de que manter os sauditas como aliados é imprescindível para a
estabilidade geopolítica na região. Nada mais, nada menos do que o
vice-presidente norte- americano, Joe Biden, chegou a afirmar: “A Arábia
Saudita, a Turquia e os Emirados Árabes estavam muito determinados a derrubar
Assad e, em essência, provocar uma guerra por procuração entre sunitas e
xiitas. O que fizeram? Destinaram centenas de milhões de dólares e dezenas de
toneladas de armas a qualquer um disposto a lutar contra Assad. Porém, as
pessoas que estavam sendo abastecidas eram da Al-Nusra, Al-Qaeda e extremistas
da jihad vindos de outras partes do mundo”. Mesmo diante dessa evidência, os
Estados Unidos, de Bush a Obama, nunca tomaram qualquer atitude mais drástica.
Mas, se a ideologia adotada é importante para compreender a violência e o
sectarismo propagado pelo isis, Cockburn não descuida dos aspectos estruturais
(sociais e econômicos) que permitem a realização dessa mesma ideologia. No
Iraque, o isis tem atraído o apoio de membros da minoria sunita que foi
marginalizada sob o domínio do governo autoritário de Nouri al-Maliki, o
primeiro-ministro xiita, patrocinado por Washington e Teerã. O apadrinhamento
baseado em partido, família ou comunidade determinava quem deveria conseguir
emprego e ser visto como cidadão, e quem seria um pá- ria. Cockburn procura dar
vida a esses aspectos recordando uma experiência pessoal que teve no Iraque:
“Tentei contratar um motorista recomendado por um amigo. Ele medisse que
precisava do dinheiro, mas era sunita, e o risco de ser parado num posto de
controle era grande demais. ‘Estou tão amedrontado’, disse, ‘nunca saio de casa
depois das seis da tarde’.” Assim, a hostilidade disseminada aos sunitas pelo
governo iraquiano, como promotor do sectarismo, permitiu ao isis aliar-se com
vários grupos militantes sunitas, com quem antes travava combate. Esse
sectarismo governamental difundiu a percepção entre os sunitas de que sua única
chance de sobreviver e mesmo de vencer a luta pelo poder no Iraque é enfrentar
a hegemonia xiita. O rápido avanço do Estado Islâmico, em todo o norte do
Iraque, em junho de 2014, capturando sua segunda maior cidade, Mosul, e
ameaçando avançar em direção a Bagdá, atordoou especialistas em segurança internacional
e lideranças políticas do Ocidente. O colapso e verdadeira debandada de
milhares de soldados do exército iraquiano era uma demonstração cabal do
fracasso da chamada política de reconstrução dos Estados Unidos e seus aliados
no Iraque, depois de dez anos de ocupação e mais de 100 bilhões de dólares
investidos em infraestrutura e segurança. Esse fato é atualmente comentado por
todos como decisivo para a ascensão do grupo, mas é importante lembrar que,
mesmo antes da queda de Mosul, PatrickCockburn intuiu que algo estava por vir.
Em 2013, ele elegeu al-Baghdadi como o “homem do ano” no Oriente Médio no
jornal em que é colaborador ( The Independent). A atenção de Cockburn já se
dirigia para o grupo que vinha obtendo muitas vitórias simbólicas, como a
captura de Fal ujah (a cidade onde houve batalhas sangrentas contra forças
anglo-americanas durante a ocupação do Iraque), ou o assalto à prisão de Abu
Ghraib (local das torturas praticadas pelas forças o fracasso da de segurança
dos Estados Unidos). Cockburn julgava que, provavelmente, essas vitórias
impulsionariam o credenciamento do isis junto à população iraquiana sunita
marginalizada. As fontes e as informações colhidas por Cockburn ganham uma
dimensão toda especial nos seus relatos, não como curiosidades de um suposto
exotismo árabe-islâmico, mas sim como frestas de luz que permitem iluminar os
tortuosos caminhos dos conflitos armados no Oriente Médio. Segundo uma fonte
iraquiana de Cockburn, em muitos aspectos o governo iraquiano já não detinha o
poder mesmo antes da queda militar de Mosul. Segundo essa mesma fonte, o isis
já cobrava impostos de vendedores de verduras no mercado, de empresas de
telefones celulares e de construção. Essas informações permitiram Cockburn
aferir que a renda com estas cobranças alcançava por volta de 8 milhões de
dólares ao mês. Aliás, ele observa o mesmo tipo de “tributação” em Tikrit, onde
um amigo relatou que as pessoas não comiam em nenhum restaurante que não
estivesse em dia com os pagamentos ao isis, por medo de que o local fosse
atingido por uma bomba durante o jantar. Cockburn cita outra fonte iraquiana
que lhe permitiu compreender o intrincado jogo dos atores internacionais como
um dos fatores que permitiu a ascensão isis. De acordo com essa revelação, no período
de 2011 a 2013, a inteligência militar turca estimulou experientes oficiais
iraquianos da era Saddam a trabalhar com o movimento jihadista desempenhando um
papel crucial no planejamento militar cuidadoso e no aprimoramento tático do
grupo. O mesmo passou a ocorrer na Síria após os movimentos da Primavera Árabe
quando, de acordo com um ex-comandante do Exército Sírio Livre (fsa) citado por
Cockburn, funcionários das agências de inteligência dos Estados Unidos, Grã-
Bretanha e França, e representantes dos governos da Arábia Saudita, Emirados
Árabes, Jordânia e Qatar circulavam livremente nas fileiras da oposição síria.
Do alto de sua experiência, Cockburn questiona o próprio termo “repórter de
guerra”, que dá a falsa impressão de que os conflitos podem ser melhor
compreendidos com uma cobertura centrada unicamente na descrição do combate
militar, pois é fundamental que seja interpretado sob o prisma da política. E
exemplifica: “Em 2003, as tvs mostraram colunas de tanques iraquianos esmagados
e em chamas, após os ataques norte-americanos na autoestrada principal a norte
de Bagdá. Se não fosse pelo cenário de deserto, os telespectadores poderiam
estar observando imagens do exército alemão derrotado na Normandia, em 1944.
Porém, subi em alguns dos tanques e pude constatar que haviam sido abandonados
muito antes de serem atingidos. Era algo importante, porque mostrava que o
exército iraquiano não estava disposto a lutar e morrer por Saddam. Também
permitia prever o futuro da ocupação”. Outro risco que acompanha os “repórteres
de guerra” é que há uma tendência a dramatizar os eventos em prol da audiência
e em prejuízo da complexidade da história. Quem não se sente atraído pelas
cenas que mostram bombas explodindo e veículos militares em chamas ao fundo? O problema,
adverte Cockburn, é que essas
“ultrassimplificações” articuladas à propaganda política dos governantes
permitem apresentar os conflitos como uma batalha entre o bem e o mal,
suprimindo toda e qualquer forma de nuances que possam existir nessas situações.
Dizer que em
todas as guerras há uma diferença entre o que é reportado e o que de fato
ocorreu é senso comum, mas nas guerras travadas no Afeganistão, Iraque, Líbia e
Síria nos últimos 10 anos houve informações completamente erradas, inclusive
sobre a identidade dos vitoriosos e dos derrotados – o que, segundo Cockburn,
talvez explique “por que houve tantas surpresas e reversões inesperadas dos
fatos”. Cockburn observa que boa parte da mídia ocidental difundiu a crença
equivocada de que as inovações tecnológicas mudavam rapidamente as realidades
políticas. Os jornalistas estrangeiros se juntaram à oposição na demonização
dos governos de Assad, na Síria, e Muammar Gaddafi, na Líbia, sem se preocupar
em investigar quem eram os opositores. De forma sarcástica, Cockburn observa
que era como se um “admirável mundo novo” estivesse sendo criado em alta
velocidade nas telas das tvs. Novamente destilando ironia, Cockburn dá sua dica
para o sucesso: “O ingrediente essencial de uma boa história de atrocidades é ser
chocante e não refutável imediatamente”. Entre tantas ilustrações sobre
histórias fraudulentas relatadas por Cockburn, cito esta: “Um correspondente
internacional visitou um campo de refugiados sírios onde encontrou uma criança
de dez anos assistindo a um clipe de YouTube mostrando dois homens sendo
executados com uma motosserra. A narração dizia que as vítimas eram sunitas
sírios e os assassinos, alawitas. Na verdade o filme era do México e os
assassinatos haviam sido praticados pelo cartel das drogas”. Cockburn mostra
como uma série de erros cometidos pelos Estados Unidos e seus aliados
ocidentais criou as condições para o surgimento do isis. Em primeiro lugar, a
invasão do Iraque em 2003 fez com que os sunitas fossem marginalizados. Em
segundo lugar, o apoio ocidental aos insurgentes na Síria criou o cenário
propício para tipo de combate implementado pelo isis. Assim, conclui que a
“Guerra ao Terror” promovida pelos Estados Unidos foi um grande fracasso. Isso
é verdade, desde que você acredite que realmente era esse o objetivo visado
pelos políticos e agentes de segurança norteamericanos e britânicos. Sem negar
completamente essa versão, creio que também é possível levantar outra hipótese
que não aparece no livro. Não é conveniente, para alguns, ter um inimigo
permanente que se transmuta em formas cada vez mais assustadoras? Que o diga a
indústria bélica, que precisa justificar seu crescimento, as empresas privadas
de segurança, que precisam justificar sua expansão, e os ideólogos da ocupação
do Oriente Médio, que precisam justificar a presença militar norte-americana na
região. Cockburn mostra, fartamente, exemplos de ações militares e diplomáticas
completamente equivocadas por parte dos Estados Unidos, que, ao invés de
derrotar o isis, só o fortaleceu. Sim, é possível e provável que erros de
análise e de compreensão de fenômenos sociais e políticos sejam cometidos, mas
será que é razoável supor que o aparato diplomático-militar dos Estados Unidos
seja tão despreparado a ponto de cometer, reiteradamente, erros grosseiros? Ou
podemos ter também como hipótese que talvez o fracasso da guerra possa ser de
fato o seu sucesso? Os líderes políticos e generais em Washington e Londres
podem estar recebendo pesadas críticas domésticas por seus erros no Iraque e Síria,
mas alguns analistas do mundo árabe observam que, na verdade, estão sendo muito
bem-sucedidos na execução de um plano para dividir o país. No fundo, a unidade
entre o fracasso da “Guerra ao Terror” a resistência sunita e xiita sempre foi
motivo de preocupação por parte desses líderes. Seja como for, o fato é que a
ascensão meteórica do isis e sua declaração de restabelecer o Califado são algo
sem precedentes na história do sistema estatal árabe que teve início após o fim
do Império Otomano e a Conferência de Paz de Paris, em 1919. Pela primeira vez,
um ator não estatal islâmico, que agora é simultaneamente nacional e
transnacional, esculpiu uma nova unidade política no mundo árabe, onde as
fronteiras permaneceram relativamente inalteradas ao longo de todo o século xx.
Embora mencione em vários momentos, Cockburn não explora em profundidade o
surgimento de uma nova forma de espacialidade política ligada à criação do
Estado Islâmico no Oriente Médio, negando claramente a essência geográfica do
campo das relações internacionais: o Estado com um território claramente
delimitado. Ainda que se possa duvidar de sua durabilidade, trata- -se,
evidentemente, de uma demonstração da fraqueza do processo de criação
artificial de estados-nação na região do Oriente Médio, caracterizado pelo
arroubo das potências ocidentais em construir um sistema político na região à
sua imagem e semelhança. O fracasso do nacionalismo como uma ideologia política
no Oriente Médio influenciou o surgimento de movimentos radicais islâmicos que
reivindicam a constituição de uma nova ordem política nesses territórios: o
Califado. O colapso do Iraque e da Síria como estado-nação tem dado a estes
movimentos força para consolidar o seu projeto e alargar os seus objetivos
sobre um território que pode cobrir a região do Oriente Médio e além. De fato,
este espaço geopolítico deve ser analisado também sob a perspectiva do que
novas possibilidades de exploração de recursos (petróleo, principalmente) podem
dar ao novo Califado em termos de poder dentro do sistema internacional. O isis
é especialista em estimular o medo. Os vídeos que produz, de seus combatentes
executando soldados e pilotos de avião, tiveram um papel importante para
aterrorizar e desmoralizar seus inimigos. Entretanto, esse medo também pode
unir um amplo arco de oponentes do isis que eram antes hostis uns em relação
aos outros. Como nota Cockburn, se o apelo do Estado Islâmico aos muçulmanos
sunitas na Síria, no Iraque e em todo o mundo funciona, em parte, com base num
sentimento de que suas vitórias são presentes de Deus e inevitáveis, isso
também pode ser sinal de fragilidade, já que qualquer derrota pode afetar a
alegação de apoio divino. Ainda que seja improvável cumprir a promessa de
garantir a viabilidade de seu Califado no Iraque e na Síria contra o poderio
militar dos Estados Unidos e sua coalizão dentro do território governado por
dois governos xiitas, sua ideologia provavelmente continuará a inspirar
seguidores. Quer se trate de um isis abrigado nos centros urbanos de Mosul e Raqqa
ou espalhado nas periferias, ainda assim será capaz de lançar ataques
esporádicos dentro das cidades iraquianas e sírias, em particular por meio de
carros-bombas e ataques suicidas. O Estado Islâmico poderia rasgar o Oriente
Médio e causar ainda mais agitação para as gerações futuras, onde os Estados
não têm uma ideologia que lhes permite competir como um foco de lealdade
baseada em seitas religiosas ou grupos étnicos. A capacidade do isis para
apelar a um imaginário islâmico através de fronteiras e sua restauração do
Califado representa a cristalização de uma ideologia jihadista que se
desenvolveu ao longo dos últimos trinta anos. Seu líder, Abu Bakr al-Baghdadi, propaga
que o Califado é um tipo de Estado onde “árabes e não árabes, homens brancos e
negros, orientais e ocidentais são todos irmãos... A Síria não é para os sírios
e o Iraque não é para os iraquianos. A Terra é de Alá”. O grande pensador da
guerra, C. Von Clausewitz, julgava que sempre reinará uma grande incerteza
durante os confrontos armados, já que é simplesmente impossível ter
conhecimento pleno de todas as informações em jogo. Como consequência, toda
ação, em certa medida, será planejada na “névoa da guerra”, que pode dar
aparência deturpada às coisas. Portanto, o leitor não deve se espantar se,
mesmo após a leitura desse livro, ainda reinem algumas incertezas. É impossível
dissipar a névoa, mas o leitor perceberá com certeza que, após a leitura dessa
obra, poderá acompanhar com mais segurança as inúmeras peças em movimento nesse
verdadeiro xadrez geopolítico do Oriente Médio. São Paulo, Junho, 2015 •
Reginaldo Nasser é mestre em Ciência Política (Unicamp) e doutor em Ciências
Sociais (puc-sp). Professor do Programa de Pós-Graduação em Relações
Internacionais – San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp e puc) e chefe do
Departamento de Relações Internacionais da puc-sp.
No verão de
2014, ao longo de 100 dias, o Estado Islâmico do Iraque e do Levante1 (isis)
transformou a política do Oriente Médio. Combatentes jihadistas combinaram
fanatismo religioso e expertise militar para alcançar vitórias espetaculares e
inesperadas contra forças do Iraque, da Síria e dos curdos. O isis chegou a
controlar a oposição sunita aos governos de Bagdá e Damasco e se espalhou por
toda parte, do Curdistão do Iraque à fronteira desse país com o Irã e às
periferias de Aleppo, maior cidade síria. Durante essa rápida ascensão, agiu
como que intoxicado por seus próprios triunfos. Não se preocupou com a expansão
de sua lista de inimigos, que passou a incluir nações como os Estados Unidos e
o Irã, adversários de longa data, mas unidos pelo medo comum dos
fundamentalistas. A Arábia Saudita e as monarquias sunitas do Golfo Pérsico
aliaram-se aos ataques aéreos dos norte-americanos sobre o isis na Síria,
porque sentiram que o grupo representava ameaça à sua própria sobrevivência e
status político no Oriente Médio, maior do que qualquer outro fato, desde que
Saddam Hussein invadiu o Kuwait em 1990. 1. Nota do Tradutor: isis na maior
parte da imprensa, mas também escrito isil na sigla em inglês para Islamic
State on Iraq and the Levant. No Oriente Médio, o grupo é conhecido em árabe
como ad-Dawlah al-Islāmiy ah fī ‘l-Irāq wa-shShām, levando ao acrônimo árabe
Da’ish ou Daesh. O Iraque e a Síria chegaram à beira da desintegração quando
suas diversas comunidades – xiitas, sunitas, curdos, alawitas e cristãos –
perceberam que precisavam lutar por sua própria existência. Ao exigir
obediência sem perdão à sua variante particular e exclusiva do Islã, o isis
matou ou forçou a fuga de todos aqueles que rotulou como “apóstatas” e
“politeístas” ou que simplesmente se colocaram contra seu domínio. Seus líderes
eram produtos de uma década de guerra no Iraque e na Síria, e o martírio
deliberado, por meio de bombas suicidas, foi uma prática central entre suas
táticas militares. O mundo nunca havia visto algo semelhante a seu uso de
violência pública, para aterrorizar oponentes, desde o Khmer Vermelho no
Camboja, 40 anos antes. A data crucial foi 10 de junho de 2014, quando o isis
capturou Mosul, capital do norte do Iraque, após quatro dias de luta. Em 23 de
setembro, os Estados Unidos ampliaram o uso de força militar na Síria, para
prevenir a expansão dos jihadistas. Nos 105 dias que separaram os dois eventos,
o isis avançou sobre o Iraque e a Síria, derrotando com facilidade inimigos
superiores em número e melhor equipados. Como seria de se esperar, atribuiu
esses sucessos à intervenção divina. Em contraste, o governo iraquiano dispunha
de um exército com 350 mil soldados, no qual havia investido 41,6 bilhões de
dólares, entre 2011 e 2014. Porém, essas forças derreteram sem resistência
significativa. Uniformes e equipamentos abandonados foram encontrados dispersos
ao longo das estradas que levavam ao Curdistão e a lugares seguros. Em duas
semanas, as áreas do oeste do Iraque não controladas pelos curdos passaram às
mãos do isis, que, no fim do mês, anunciou a criação de um Califado, que
avançava profundamente no Iraque e Síria. Seu líder, Abu Bakr al-Baghdadi,
afirmou tratar-se de “um Estado onde árabes e não árabes, homens brancos e
negros, orientais e ocidentais são todos irmãos... A Síria não é para os sírios
e o Iraque não é para os iraquianos. A Terra é de Alá”. As palavras de
Al-Baghdadi revelavam uma intoxicação pela vitória militar que foi crescendo à
medida que seus homens enfrentaram e derrotaram oponentes na Síria e no
Curdistão iraquiano. Em agosto, a ameaça do isis à capital curda, Erbil,
deflagrou ataques aéreos dos Estados Unidos no interior do Iraque, que foram
mais tarde estendidos à Síria, em 23 de setembro. O poder aéreo norteamericano
pode não ter sido suficiente para eliminar ou mesmo conter o isis, mas forçou
os combatentes a abandonarem a guerra semiconvencional, realizada com colunas
de veículos (frequentemente, Humvees americanos, capturados do exército do
Iraque) cheios de combatentes bem armados. Ao invés disso, o isis recuou para
táticas de guerrilhas, já não esperando desencadear um ataque devastador contra
o presidente sírio, Bashar al-Assad, os curdos sírios ou outros grupos rebeldes
sírios contra os quais combatia na guerra civil desde janeiro de 2014. Ao longo
desses 100 dias, a geografia política do Iraque mudou diante dos olhos de seu
povo e surgiram sinais concretos dessa transformação em toda parte. Os
moradores de Bagdá passaram a cozinhar com gás propano, porque o abastecimento
de eletricidade tornou-se totalmente inconstante. Logo, houve um
desabastecimento crônico de cilindros de gás, que chegavam de Kirkuk: a estrada
para o norte havia sido interrompida por combatentes do isis. Alugar um
caminhão por um só dia, para percorrer 350 quilômetros da capital curda, Erbil,
a Bagdá, passou a custar 10 mil dólares – contra 500 dó- lares, um mês antes.
Existiam sinais abundantes de que os iraquianos temiam um futuro de violência,
pois as armas e munições haviam ficado muito mais caras. O valor de uma bala
para um rifle de assalto ak-47 rapidamente triplicou – para quatro mil dinares
iraquianos, aproximadamente dois dólares. Tornou-se impossível comprar
Kalashinikovs de traficantes de armas, embora pistolas ainda fossem encontradas
pelo triplo do preço da semana anterior. Subitamente, quase todo mundo tinha
armas, inclusive os guardas de trânsito de Bagdá, barrigudos e de camisas
brancas, que passaram a usar submetralhadoras. Muitos dos homens armados que
começaram a aparecer nas ruas de Bagdá e outras cidades xiitas eram milicianos
xiitas – alguns do Asaib Ahl aq-Haq, um racha do grupo populista xiita,
seguidor do clérigo nacionalista Muqtada al-Sadr. Essa organização era
controlada pelo primeiro-ministro Nouri al-Maliki e os iranianos. O fato de o
governo apoiar-se em milícias sectárias para defender a capital foi um sinal do
colapso das forças de segurança do Estado e do exército. Ironicamente, até
então, um dos poucos feitos de Maliki como primeiro ministro tinha sido
enfrentar as milícias xiitas em 2008; mas, agora, ele as encorajava a retornar
às ruas. Logo, corpos passaram a ser despejados à noite. Seus documentos de
identidade haviam sido levados, mas se assumia que fossem vítimas sunitas dos
esquadrões da morte das milícias. O Iraque parecia estar escorregando na beira
de um abismo, no qual massacres e contra massacres sectários seriam comparáveis
aos da guerra civil entre sunitas e xiitas, em 2006 e 2007. Os 100 dias do isis
em 2014 marcaram o fim de um período particular na história do Iraque, que
começou com a derrubada de Saddam Hussein pela invasão dos Estados Unidos e
Grã-Bretanha, em março de 2003. Desde então, houve uma tentativa, da oposição
iraquiana, de derrubar o velho regime e seus aliados externos e criar um novo
Iraque, no qual as três comunidades compartilhassem o poder em Bagdá. A
experiência fracassou desastrosamente, e parece que será impossível ressuscitar
o projeto, porque as linhas de batalha entre curdos, sunitas e xiitas são hoje
muito mais rígidas e amargas. O balanço do poder no interior do país está
mudando. Também estão se alterando as fronteiras de fato do Estado, com um
Curdistão ampliado e cada vez mais independente – tendo os curdos usado
oportunisticamente a crise para obter territórios que sempre reivindicaram – e
o fim da divisa entre Iraque e Síria. O isis é especialista em estimular o
medo. Os vídeos que produz, de seus combatentes executando soldados e pilotos
de avião, tiveram um papel importante para aterrorizar e desmoralizar militares
xiitas à época da captura de Mosul e Tikrit. Em seguida, houve mais cenas
sinistras publicadas na internet, quando o isis derrotou a peshmerga (soldados
curdos) do Governo Regional do Curdistão, em agosto. Entretanto, o medo também
uniu um amplo arco de oponentes do isis que eram antes hostis uns em relação
aos outros. No Iraque, os Estados Unidos e os iranianos ainda se denunciam reciprocamente.
Porém, a incursão de milícias xiitas controladas pelo Irã, ao norte de Bagdá,
em setembro, para terminar com o cerco à cidade xiita turcomana de Amerli,
somente foi possível graças aos ataques aéreos dos norte-americanos às posições
do isis. Quando o primeiro ministro desacreditado do Iraque, Nouri al-Maliki,
foi substituído por Haider al-Abadi, no mesmo período, a mudança foi apoiada
tanto por Washington quanto por Teerã. Maliki considerou brevemente uma
resistência à sua substituição, mobilizando unidades militares leais a si no
centro de Bagdá, mas foi duramente advertido contra uma tentativa de golpe por
oficiais iranianos e norteamericanos. Claro que porta-vozes dos Estados Unidos
e do Irã negam a existência de colaboração ativa entre as duas partes, mas
estão, no momento, adotando políticas paralelas diante do isis, comunicando
suas intenções por meio de intermediários e serviços de inteligência. Não é
algo exatamente novo. Os iraquianos sempre disseram, cinicamente, que quando se
trata do Iraque “os americanos e iranianos gritam uns com ou outros sobre, mas
se dão as mãos por baixo”. Tais teorias conspiratórias podem ser exageradas,
mas é verdade que nas relações entre os Estados Unidos e seus aliados europeus,
por um lado, e os governos sírio e iraniano, por outro, há uma distância maior
do que nunca entre o que Washington diz e o que faz. O assalto do isis contra
os curdos e, em especial, as guerrilhas curdas Yazidi, no início de agosto,
abriu um novo capítulo no envolvimento dos Estados Unidos no Iraque. A rápida
derrota da força, supostamente constituída por combatentes superiores aos do
exército regular do Iraque, foi uma demonstração clara da capacidade militar do
isis. É possível que o poderio da peshmerga tenha sido superestimado: seus
integrantes não haviam combatido contra ninguém, exceto entre si mesmos, por um
quarto de século. Um observador externo que a conhecia bastante se referia a
ela como a “pêche melba”2, acrescentando que era boa apenas para emboscadas nas
montanhas. Sacudidos pelas vitórias do isis, os Estados Unidos intervieram para
lançar ataques aéreos e proteger a capital 2. N. do T.: sobremesa de pêssegos,
amoras e sorvete.
curda, Erbil.
A partir de então, voltaram à guerra no Iraque, embora mais cautelosos e
alertas para as perigosas complexidades da atividade militar no país do que em
2003. Por diversas vezes, o presidente BarackObama e seus assessores disseram
que precisavam de um parceiro confiável em Bagdá, um governo mais inclusivo e
menos sectário do que o de Maliki, para que Washington pudesse empregar sua
força. O objetivo era inteligente: dividir a comunidade sunita, separá-la do
isis e isolar os extremistas, de modo semelhante ao do “Avanço” no deslocamento
de soldados em 2007. Os norte-americanos argumentaram que para pacificar ao
menos um setor dos sunitas era preciso que houvesse em Bagdá um governo
disposto a dividir poder, dinheiro e empregos. Como é comum no Iraque e na
Síria, foi mais fácil dizer do que fazer. Muitos dos sunitas vivendo sob o
Califado instituído pelo isis não gostavam de seus novos governantes e
sentiam-se amedrontados por eles. No entanto, temiam ainda mais o exército
iraquiano, as milícias xiitas e os curdos no Iraque, ou o exército da Síria e
as milícias favoráveis a Assad nesse país. O dilema com que se deparam os
sunitas no Iraque e na Síria é graficamente descrito num e-mail enviado em
setembro, depois que seu bairro foi bombardeado pela aviação iraquiana, por uma
amiga sunita em Mosul, que tem todas as razões para não gostar do isis. Vale a
pena reproduzilo na íntegra, porque ele revela como será difícil para os
sunitas iraquianos enxergarem no governo de Bagdá algo além de um inimigo
odiado: O bombardeio foi executado pelo governo. Os ataques visaram bairros
totalmente civis. Talvez desejassem atingir duas bases do isis, mas nenhuma das
rodadas de bombas acertou os alvos. Um deles é uma casa, ligada a uma igreja,
onde vivem homens do isis. Fica próxima ao gerador do bairro e distante 200 a
300 metros de nossa casa. O bombardeio apenas feriu civis e demoliu o gerador.
Desde ontem à noite, não temos mais eletricidade. Escrevo de um aparelho na
casa de minha irmã, que está vazia. O bombardeio do governo não atingiu nenhum
homem do isis. Acabo de ouvir de um parente que nos visitou para saber se
estamos bem, depois daquela noite terrível, que, em razão do bombardeio, jovens
estão juntando-se ao isis às dezenas ou centenas, porque cresceu o ódio contra
o governo, que não se preocupa com a morte de sunitas. As forças do governo
foram para Amerli, uma vila xiita circundada por dezenas de vilas sunitas,
embora Amerli jamais tenha sido tomada pelo isis. As milícias do governo
atacaram as vilas sunitas que a circundam, matando centenas, com auxílio dos
ataques norte-americanos. Muito disso é verdadeiro na Síria. O isis é mais
popular nas cidades e vilas sunitas capturadas em torno de Aleppo do que muitos
outros grupos rebeldes semibandidos. Nesse país, o isis está na ofensiva e
impôs as mais sérias derrotas que o exército oficial sofreu em três anos de
guerra, como a captura de uma base aérea bem defendida em Tabqa, na região
leste. Karen Koenig Abu-Zaid, membro da Comissão de Inquérito da onu na Síria,
disse, àquela época, que cada vez mais rebeldes estavam debandando para o isis.
“Veem que é melhor, que suas armas são fortes, que vencem batalhas, que trazem
dinheiro e que podem treiná-los”.
Os ataques
aéreos dos Estados Unidos farão vítimas no isis e tornarão mais difícil que
suas colunas de veículos movam-se nas estradas. Entretanto, ser alvo dos aviões
norte-americanos também representa vantagens para os rebeldes, porque haverá
inevitavelmente vítimas civis. A força militar não substitui um aliado
confiável no solo e pode ser contraprodutiva, à medida que aliena a população
local. Pode matar numerosos combatentes do isis – mas muitos foram ao Iraque e
Síria com a intenção expressa de se tornar mártires. No início de outubro, os
resultados da tentativa de fazer o isis recuar por meio de força aérea apenas
tornaram-se evidentes: os combatentes do grupo continuavam a avançar contra os
sírios em Kobani e contra as forças do governo iraquiano, a oeste de Bagdá. A
fraqueza política da coalizão liderada pelos Estados Unidos estava se tornando
evidente, porque membros destacados, como a Arábia Saudita, os Emirados Árabes
e a Turquia, eram tão hostis ao governo Assad, aos curdos sírios e aos que
combatiam o isis quanto este próprio. O vice-presidente norte-americano, Joe
Biden, deu a Washington uma visão real sobre seus aliados na região e na Síria,
com franqueza não diplomática, ao falar, no Fórum John F. Kennedy Jr, no
Instituto de Política da Universidade de Harvard, em 2 de outubro de 2014: A
Arábia Saudita, a Turquia e os Emirados Árabes estavam muito determinados a
derrubar Assad e, em essência, provocar uma guerra por procuração entre sunitas
e xiitas. O que fizeram? Destinaram centenas de milhões de dólares e dezenas de
toneladas de armas a qualquer um disposto a lutar contra Assad. Porém, as
pessoas que estavam sendo abastecidas eram da Al-Nusra e Al-Qaeda e extremistas
da jihad vindos de outras partes do mundo.
·
Ele acrescentou que o isis, sob pressão no
Iraque, tinha sido capaz de reconstruir sua força na Síria. E sobre a política
norteamericana, de recrutar “moderados” sírios para lutar tanto contra o isis
quanto contra Assad, Biden disse que “os Estados Unidos descobriram não haver
nenhum centro moderado na Síria, porque os moderados são compostos de
comerciantes, não de soldados”. Raras vezes as forças que agiram para criar o
isis e a crise atual no Iraque foram descritas com tanta precisão. Atualmente,
movimentos do tipo Al-Qaeda governam uma vasta área no norte e oeste do Iraque
e no norte e leste da Síria, centenas de vezes maior do que qualquer território
controlado, em algum momento, por Osama Bin Laden. Foi depois de sua morte que
filiais ou clones da Al-Qaeda tiveram seus maiores êxitos, incluindo a captura
de Raqqa, na região leste da Síria, que se tornou, em março de 2013, a primeira
capital provincial a cair em mãos dos rebeldes. Em janeiro de 2014, o isis
tomou Fal ujah, pouco mais de 60 quilômetros distante de Bagdá, uma cidade
cercada e atacada pelos marines norte-americanos, 10 anos antes, num episódio
que se tornou famoso. Em poucos meses, eles também capturaram Mosul e Tikrit.
As linhas de fronteira podem continuar a mudar, mas será difícil reverter a
expansão global de seu poder. Com seu ataque rápido e multi-direcionado de
junho de 2014, os militantes do isis superaram a Al-Qaeda como o mais poderoso
e eficaz grupo jihadista no mundo. Esses fatos chocaram muitos no Ocidente, inclusive
os políticos e especialistas, cujo olhar parecia estar sempre atrasado em
relação aos acontecimentos. Uma razão é que se tornou muito difícil para
jornalistas e observadores externos visitar as áreas onde o isis operava, com
enorme risco de sequestro ou assassinato. “Aqueles que costumavam proteger os
jornalistas estrangeiros já não podem proteger nem a si mesmos”, contou-me um
correspondente intrépido, explicando por que não retornaria às áreas
controladas pelos rebeldes na Síria. A falta de cobertura chegou a ser
conveniente para os governos dos Estados Unidos e de outras nações ocidentais.
Permitiu-lhes esconder a extensão do fracasso catastrófico da “Guerra ao
Terror” lançada após o 11 de Setembro. Esse insucesso também foi mascarado
pelas ilusões e autoilusões, por parte dos governos. Em 28 de maio de 2014, ao
falar na Academia Militar de West Point sobre o papel dos norte-americanos no mundo, o
presidente Obama afirmou que a maior ameaça não era representada pela Al-Qaeda
central, mas por “suas filiais descentralizadas e extremistas, muitos com
agendas focadas nos países em que operam”. E acrescentou: “À medida que a
guerra civil na Síria extravasa suas fronteiras, amplia-se a capacidade dos
grupos extremistas, fortalecidos pelas batalhas, em nos perseguir”. Era
verdade, mas a solução de Obama diante da ameaça seria, segundo ele disse,
“ampliar o apoio àqueles que, na oposição síria, oferecessem a melhor
alternativa diante dos terroristas”. Em junho, ele solicitou ao Congresso 500
milhões de dólares para treinar e equipar membros da oposição síria
“apropriadamente examinados”. Havia aí intenção real de enganar, porque,
conforme o vice-presidente Joe Biden admitiria cinco meses mais tarde, a
oposição militar síria é dominada pelo isis e o grupo Frente al-Nusra, o
representante oficial da AlQaeda, além de outros extremistas ligados à jihad.
Na verdade, não havia muro de separação algum entre eles e os aliados
supostamente moderados de Washington. Um membro da inteligência de um país do
Oriente Médio vizinho à Síria revelou-me que os integrantes do isis “dizem que
ficavam sempre satisfeitos quando armas sofisticadas eram enviadas para
qualquer tipo de grupo anti-Assad, porque eles podem sempre obtê-las por ameaça
ou pagamentos em dinheiro”. Não são palavras vazias. Armas fornecidas às forças
anti-Assad na Síria, por aliados dos Estados Unidos, como a Arábia Saudita e o
Qatar, foram frequentemente capturadas no Iraque. Vivi um pequeno exemplo das
consequências desse fluxo de armas, mesmo antes da queda de Mosul, quando, no
inverno de 2014, tentei reservar um voo para Bagdá na mesma empresa de aviação
europeia que havia usado um ano antes. Disseram-me que ela havia interrompido a
rota para a capital do Iraque, por temer que insurgentes tivessem obtido mísseis
antiaéreos portáteis originalmente fornecidos às forças anti-Assad na Síria e
que os usassem contra aviões comerciais voando para o Aeroporto Internacional
de Bagdá. O apoio ocidental para a oposição síria pode ter sido insuficiente
para derrubar Assad, mas foi usado com sucesso para desestabilizar o Iraque,
como haviam previsto, desde há muito, políticos iraquianos. O fracasso da
“Guerra ao Terror” e o ressurgimento da Al-Qaeda são também explicados por um
fenômeno evidenciado horas depois do 11 de Setembro. Os primeiros movimentos de
Washington deixaram claro que ela seria conduzida sem nenhum confronto com a
Arábia Saudita e o Paquistão, dois aliados próximos dos Estados Unidos, apesar
do fato de que, sem o envolvimento desses dois países, os ataques ocorridos em
Nova York e Washington provavelmente não teriam ocorrido. Dos 19 sequestradores
daquele dia, 15 eram sauditas. Bin Laden era originário da elite saudita.
Documentos oficiais norte-americanos frisam repetidamente que o financiamento à
Al-Qaeda e outros grupos jihadistas era proveniente da Arábia Saudita e das
monarquias do Golfo Pérsico. No caso do Paquistão, exército e serviço militar
haviam desempenhado um papel central desde o início dos anos 1990, ao
impulsionar a tomada do poder pelo Talibã, no Afeganistão, onde abrigaram Bin
Laden e a Al-Qaeda. Após um breve hiato, durante e após o 11 de Setembro, o
Paquistão reiniciou seu apoio ao Talibã afegão. Ao falar sobre o papel central
do Paquistão no apoio ao Talibã, o representante especial dos Estados Unidos
para esse país e o Afeganistão, Richard C. Holbrooke, afirmou: “Nós podemos
estar lutando contra o inimigo errado, no lugar errado”. A importância da
Arábia Saudita na ascensão e retorno da Al-Qaeda é frequentemente mal
compreendida e avaliada. O país é influente porque suas vastas reservas de óleo
e riqueza o tornam poderoso no Oriente Médio e além. Contudo, não são apenas os
recursos financeiros que o transformam em ator tão importante. Outro fator é
seu papel na propagação do wahabismo, a versão fundamentalista do Islã, nascida
no século xviii, que impõe a lei da sharia, relega as mulheres ao papel de
cidadãs de segunda classe e enxerga os xiitas e Sulistas como não muçulmanos,
que devem ser tão perseguidos quanto cristãos e judeus. Tais intolerância
religiosa e autoritarismo político, com prontidão para o uso da violência, que
têm muitas simi-litudes com o fascismo europeu dos anos 1930, estão se tornando
cada vez piores. Por exemplo, há poucos anos, o saudita que montou um website
em que clérigos podiam ser criticados foi condenado a mil chibatadas e sete anos
de prisão. A ideologia da Al-Qaeda e do isis é em grande parte originária do
wahabismo. Os críticos dessa nova tendência do Islã originários de outras
partes do mundo muçulmano não sobrevivem muito: são forçados a fugir ou
assassinados. Ao denunciar os líderes jihadistas em Kabul, em 2003, um editor
afegão descreveu-os como “fascistas sagrados”, que usavam o Islã como “um
instrumento para tomar o poder”. Como era de se prever, foi acusado de insulto
e teve de deixar o país. Um fato notável no mundo islâmico, nas últimas dé-
cadas, é a forma como o wahabismo está sobrepujando o sunismo islâmico
tradicional. Em um país após o outro, a Arábia Saudita injeta dinheiro para
treinar pregadores e construir mesquitas. Um resultado é a difusão da tendência
sectária entre sunitas e xiitas. Os últimos veem-se alvo de ataques sem
precedentes, da Tunísia à Indonésia. Esse sectarismo não está confinado a
vilarejos vizinhos a Aleppo ou ao Punjab: envenena as relações entre as duas
vertentes em qualquer agrupamento islâmico. Um amigo muçulmano em Londres
relatou-me: “Olhe as agendas de qualquer sunita ou xiita na Grã-Bretanha e você
encontrará pouquíssimos nomes de pessoas fora de sua própria comunidade”. Mesmo
antes de Mosul, Obama começou a perceber que grupos do tipo Al-Qaeda eram muito
mais fortes do que haviam sido antes, mas sua receita para lidar com eles
repete e exacerba erros anteriores. “Precisamos de parceiros para lutar ao
nosso lado contra os terroristas”, disse aos que o escutavam em West Point. No
entanto, quem seriam eles? Arábia Saudita e Qatar não foram mencionados, embora
continuem ao lado dos Estados Unidos na Síria. Ao invés desses dois países,
Obama apontou “Jordânia e Líbano, Turquia e Iraque” como aliados a receberem
ajuda para “enfrentar os terroristas que atuam além das fronteiras da Síria”.
Há algo absur-do nisso, já que os jihadistas estrangeiros na Síria e no Iraque,
os que Obama admite e entende como a principal ameaça, só podem chegar a esses
países porque cruzam a fronteira de 800 quilômetros entre a Turquia e a Síria
sem serem incomodados pelas autoridades turcas. A Arábia Saudita, Turquia e
Jordânia podem agora estar as-sustadas com o Frankenstein que ajudaram a criar,
mas há pouco que possam fazer para detê-lo. Um objetivo oculto da insistência
de Washington em que Arábia Saudita, Emirados Árabes, Qatar e Bahrein
participassem ou apoiassem os ataques aéreos na Síria, em setembro, foi forçá-
los a romper seus laços anteriores com os jihadistas. Houve sempre algo
fantástico na aliança dos Estados Unidos e outras potências ocidentais com as
monarquias absolutistas, teocráticas e sunitas, da Arábia Saudita e do Golfo
Pérsico, a pretexto de levar a democracia à Síria, Iraque e Líbia. Em 2011, os
norte americanos eram, no Oriente Médio, um poder mais dé- bil do que haviam
sido em 2003, porque seus exércitos fracassaram no Iraque e Afeganistão. Nas
rebeliões de 2011, os destinatários das injeções maciças de dinheiro dos reis e
emires do Golfo Pérsico foram os setores jihadistas e sunitas sectários, a ala
militarizada dos movimentos. Os oponentes seculares e não sectários dos estados
policiais há muito estabelecidos na região foram rapidamente marginalizados,
silenciados ou mortos. A mídia internacional foi muito lenta ao notar a que
pon-to a natureza desses movimentos havia mudado, embora os islamistas fossem
muito claros sobre quais eram suas prioridades sectárias. Na Líbia, um dos
primeiros atos dos rebeldes triunfantes foi exigir a legalização da poligamia,
que havia sido banida pelo regime de Muamar Gaddafi. O isis é filho da guerra.
Seus membros buscam redesenhar o mundo a partir de si mesmos, por atos de
violência. Sua combinação tóxica, porém eficaz, de cren- ças religiosas extremas
com capacidade militar é produto da guerra no Iraque desde a invasão
norte-americana em 2003 e da guerra na Síria, desde 2011. Exatamente no momento
em que a violência declinava no Iraque, foi re-avivada na Síria pelos árabes
sunitas. É consenso entre os governos e a mídia, no Ocidente, que a guerra
civil no Iraque foi reacendida pelas políticas sectárias do primeiro-ministro
iraquiano Nouri al-Malik. Na verdade, foi a guerra na Síria que desestabilizou
Bagdá, quando grupos jihadistas como o isis, à época chamado de Al-Qaeda no
Iraque, encontraram um novo campo de batalha, onde puderam lutar e florescer.
Foram os Estados Unidos, a Europa e seus aliados regionais na Turquia, Arábia
Saudita, Qatar, Kuwait e Emirados Árabes que criaram as condições para a
ascensão do isis. Eles sustentaram um levante sunita na Síria, que se espalhou
para o Iraque. Mantiveram a guerra na Síria, embora fosse óbvio, desde 2012,
que Assad não cairia. Ele nunca controlou menos de treze ou catorze capitais
provinciais da Síria, e foi apoiado pela Rússia, Irã e o Hezbol ah. Ainda
assim, as únicas chances de paz que lhe foram propostas nas conversações de
Genebra ii, em janeiro de 2014, implicavam que deixasse o poder. Ele não
aceitaria, e se criaram condições ideais para que o isis prosperasse. Agora, os
Estados Unidos e seus aliados tentam colocar as comunidades sunitas, no Iraque
e Síria, contra o grupo, mas será difícil, num momento em que esses pa- íses
estão convulsionados pela guerra. O ressurgimento de facções do tipo Al-Qaeda
já não é uma ameaça confinada à Síria, Iraque e vizinhos. O que está ocorrendo
nessas nações, combinado com a dominância crescente de crenças wahabitas
intolerantes entre as comunidades sunitas, significa que 1,6 bilhão de muçulmanos
– quase um quarto da população mundial – serão crescentemente afetados. Parece
improvável que os não muçulmanos, inclusive os ocidentais, deixem de ser
atingidos por esse conflito. Após ter transformado a cena política no Iraque e
Síria, o jihadismo ressurgente já produz efeitos remotos na geopolítica global,
com consequências sobre todos nós. Em 6 de junho de 2014, os combatentes do
isis lançaram um ataque a Mosul, segunda maior cidade do Iraque, que caiu
quatro dias depois. Foi uma vitória espantosa, alcançada por uma força de 1.300
homens contra outra que nominalmente teria 60 mil, incluindo o exército
iraquiano e as polícias locais. Como em muitos casos no Iraque, contudo, a
disparidade numérica não era o que parecia ser. A corrupção das forças de
segurança era tal que apenas um em cada três de seus homens estava de fato
presente em Mosul. Os demais pagavam até metade de seus salários a seus
superiores para ficar em permanente licença. Mosul já era muito insegura havia
bastante tempo. A Al-Qaeda no Iraque (como o isis foi anteriormente conhecido)
sempre manteve forte presença nessa cidade de dois milhões de habitantes, a
maioria esmagadoramente sunita. Durante algum tempo, o grupo obteve dinheiro
vendendo regularmente proteção a empresários. Em 2006, um comerciante com quem
eu tinha amizade em Bagdá contou que estava fechando sua loja de celulares em
Mosul por conta dos pagamentos que tinha de fazer à Al-Qaeda. Relatos
exagerados do sucesso da ofensiva norte- americana, no ano seguinte, garantindo
que a Al-Qaeda havia sido esmagada, ignoravam a presença dos combatentes em
Mosul. Algumas semanas após a queda da cidade, encontrei um empresário turco em
Bagdá. Ele relatou que havia mantido um grande contrato de construção em Mosul,
nos anos anteriores. O emir local, líder do isis, exigiu 500 mil dólares
mensais como taxa de proteção de sua empresa. “Reclamei diversas vezes em
Bagdá, mas não fizeram nada a respeito, exceto dizer que eu poderia acrescentar
o valor cobrado por eles ao preço do contrato”. O isis tinha outra vantagem,
que lhe dá até o momento grande superioridade em relação a seus principais
inimigos. Os vales do Eufrates e do Tigre e a estepe vazia e deserta onde
opera, nas regiões norte e oeste do Iraque e leste da Síria, parecem-se muito,
não importando de que lado do vale você esteja. Porém, as condições militares e
políticas são totalmente distintas nos dois países, o que permite aos
comandantes do Califado mover-se em todas as direções nesse território, tirar
proveito de oportunidades e apanhar os inimigos de surpresa. Por isso, o isis
tomou Mosul e Tikrit em junho, mas não atacou Bagdá. Em julho, impôs uma série
de derrotas ao exérci-to sírio. Em agosto, invadiu o Curdistão iraquiano. E, em
setembro, estava invadindo o enclave do Curdistão sírio em Kobani, na fronteira
com a Turquia. O grupo fica mais forte à medida que opera em dois diferentes
países. • A queda de Mosul, em junho de 2014, foi um ponto de virada tão grande
na história do Iraque, da Síria e do Oriente Médio que vale a pena descrevê-la
detalha-damente. Na campanha para o cerco da cidade, o isis começou com o que
pareceu ser um ataque diversionista contra outros alvos no norte do Iraque. Foi
provavelmente uma tática para manter, tanto quanto possível, o exército e o
governo iraquiano confusos a respeito do objetivo real. Primeiramente, uma
coluna de veículos cheios de atiradores portando metralhadoras pesadas penetrou
em Samarra, na província de Salahuddin, em 5 de junho, e se apoderou de boa
parte da cidade. Isso só poderia desencadear uma resposta governamental pesada,
já que Samarra, ainda que majoritariamente sunita, é o local de Al-Askari, uma
das sedes xiitas mais sagradas. Um ataque a bomba, em 2006, provocou resposta
xiita furiosa, com massacre de sunitas em toda Bagdá. Previsivelmente, o
exército iraquiano enviou, por helicópteros, reforços de sua Divisão Dourada,
para expulsar os combatentes inimigos. Houve outras ações diversionistas. Numa
delas, atiradores tomaram o campus universitário de Ramadi, a capital da província
de Anbar, e aprisionaram por tempo breve centenas de es-tudantes. Em outra, em
Baquba, a nordeste de Bagdá, um carro-bomba atingiu o escritório de
contraterrorismo. Neste caso, como em tantos outros, o grupo de assalto não
atacou casas e se retirou rapidamente. O assalto a Mosul foi muito mais sério,
embora a princípio não parecesse. Começou com quatro ataques suicidas a bomba,
amparados por fogo de morteiros. O isis foi apoiado por outros grupos
paramilitares sunitas, dentre eles o Naqshbandi, baathista, o Ansar al-Islam e
o Exército Moujahedin, embora não estivesse claro, até então, se facções
operavam fora de sua autoridade. Combatentes jihadistas destruíram postos de
controle governamentais que paralisavam o tráfego da cidade há muito tempo, mas
se provaram inúteis como apara- tos de segurança. Esses ataques não diferiram
das ações diversionistas mais ao sul anteriormente, mas, em 7 de junho, os
Estados Unidos e o Ministério do Interior curdo detectaram, à distância, um
comboio do Isis movimentando-se da Síria em direção a Mosul. A luta do dia
seguinte foi crítica, porque esquadrões de combatentes do isis apoderaram-se de
edifícios importantes, dentre eles o quartel da Polícia Federal. Em Bagdá, o
governo foi totalmente incapaz de compreender a gravidade da situação, dizendo
aos preocupados diplomatas norte-americanos que, em uma semana, reforços
chegariam a Mosul. Também desprezou uma proposta de Massoud Barzani, o líder
curdo, para enviar sua peshmerga a Mosul e combater o isis, considerando-a uma ação
oportunista de grilagem. A derrota tornou-se irreversível em 9 de julho, quando
três generais iraquianos destacados – Abboud Qanbar, vice-comandante; Ali
Ghaidan, comandante das for- ças terrestres; e Mahdi Gharawi, cabeça das
Operações Níneve – subiram num helicóptero e fugiram para o Curdistão. Isso
provocou o colapso moral e a desintegra- ção das forças do exército. Em 11 de
junho, ficou clara a incapacidade do governo Al-Maliki de saber o que estava
ocorrendo ou tomar decisões, quando aprovou o deslocamento de uma peshmerga à
cidade, um dia após ter fracassado. A história de um soldado do exército
iraquiano revela como era ser aprisionado nessa derrota vergonhosa. No início
de junho, Abbas Saddam, do distrito xiita de Bagdá, que servia na 11ª divisão do
exército iraquiano, foi transferido de Ramadi para Mosul. A luta começou pouco
depois de ele chegar, mas, na manhã de 10 de junho, seu comandante ordenou aos
subordinados que deixassem de atirar, entregassem suas armas aos insurgentes,
livrassemse dos uniformes e saíssem da cidade. Antes que pudessem obedecer,
suas barracas foram invadidas por uma massa de civis.
“Apedrejavam-nos”,
lembra-se Abbas, relatando que gritavam: “Não queremos vocês em nossa cidade!
Vocês são filhos de Maliki. Vocês são filhos da mutta [a tradição xiita de
casamento temporário, desprezada pelos sunitas]. Vocês são safavidas [xiitas]!
Vocês são o exército do Irã”. O ataque da multidão revelou que a queda de Mosul
resultou de uma incursão militar, mas também de um levante popular. O exército
iraquiano era odiado como uma força de ocupação exercida por soldados xiitas,
vistos em Mosul como servidores de um regime fantoche do Irã, dirigido por
Maliki no Iraque. O soldado Abbas relata que havia combatentes do isis –
chamado de Daesh no Iraque, um nome derivado de seu acrônimo em ára-be –
misturados à multidão. Eles diziam aos soldados: “Entreguem suas armas e vão.
Se não, vamos matá-los”. Abbas viu mulheres e crianças com armas militares.
Moradores ofereceram aos soldados túnicas árabes, para que pudessem fugir. Ele
voltou para sua família em Bagdá, mas não comunicou ao exército, por medo de
ser levado a julgamento por deserção, como ocorreu com um amigo. Embora os
sunitas de Mosul se alegrassem por ver o exército iraquiano pelas costas e
temessem seu retorno, estavam cientes de que a cidade havia se convertido num
lugar perigoso. Entretanto, nada podiam fazer a respeito. Em 11 de junho, uma
amiga, sunita e profissional liberal, enviou-me um e-mail no qual revelava a
ansiedade com-partilhada por muitos: Mosul caiu completamente nas mãos do isis.
A situação aqui é muito calma. Parecem tratar a população com cortesia e
protegem todas as instituições governamentais contra saqueadores. O governo de
Mosul e todo o exército do Iraque, a polícia e as forças de segurança deixaram
suas posições e fugiram da batalha. Tentamos fugir para o Curdistão, mas não
permitiram. Vão nos colocar, como refugiados, em tendas sob o calor do sol. Por
isso, a maioria das pessoas voltou para casa e decidiu que não pode se ver como
refugiada, mas não sabemos o que pode acontecer nas próximas horas. Deus
proteja todo mundo. Reze por nós. Não foi apenas em Mosul que as forças de
seguran- ça do Iraque desintegraram-se e fugiram, liderados por seus
comandantes. A cidade de Baiji, sede da maior re-finaria do país, foi
abandonada sem luta, assim como Tikrit. Outra vez, um helicóptero surgiu para
resgatar os comandantes do exército e os oficiais mais graduados. Os soldados
de Tikrit que se renderam foram divididos em dois grupos – sunitas e xiitas.
Muitos, no segundo grupo, foram metralhados diante de uma trincheira. Sua
execução foi gravada em vídeo para intimidar as unidades restantes das forças
de segurança. Os norte-americanos disseram que cinco das 18 divisões do exército
desintegraram-se durante a queda da região norte do Iraque. Ao mesmo tempo, até
mesmo o isis pareceu chocado pela extensão de seu próprio sucesso. “Tanto os
inimigos quanto os apoiadores estão boquiabertos”, afirmou o porta-voz do isis,
Abu Mohammed al-Adnani. A celebração, contudo, foi acompanhada de um aviso: os
combatentes do isis não deveriam impressionar-se com todo o material militar
norte-americano que haviam capturado. “Não sejam presas de suas vaidades e
egos”, disse a eles, “mas marchem rumo a Bagdá antes que os xiitas possam
recompor-se”.
Cheguei a
Bagdá em 16 de junho, quando a cidade ainda estava em estado de choque após o
colapso do exército. As pessoas não podiam acreditar que o período iniciado em
2005, quando os xiitas tentaram dominar o Iraque como os sunitas haviam feito
antes, sob Saddam Hussein e a monarquia, tivesse subitamente terminado. O
desastre, de seu ponto de vista, era tão inesperado e inexplicável que qualquer
outra calamidade parecia possível. Em teoria, a capital era segura: tinha uma
maioria xiita e era defendida pelos remanescentes do exército regular, além de
dezenas de milhares de milicianos xiitas. O mesmo, todavia, poderia ter sido
dito de Mosul e Tikrit. A primeira reação do governo à derrota foi descren- ça
e pânico. Maliki atribuiu a queda de Mosul a uma conspiração profunda, embora
nunca identificasse os conspiradores. Parecia ao mesmo tempo perplexo e
desafiador, mas não demonstrava sentir responsabilidade pessoal pela derrota, apesar
de ter nomeado pessoalmente todos os comandantes de divisão do exército. Nos
primeiros dias após a queda de Mosul, havia um senso de histeria semissuprimida
nas ruas vazias. As pessoas permaneciam em casa, amedrontadas, para seguir as
últimas notícias na tv. Muitas haviam estocado comida e combustível horas
depois de ouvir a respeito do colapso do exército. Lojas de doces e padarias
produziam pastéis especiais para quebrar o jejum ao final do dia, durante o
Ramadan, mas poucos os compravam. Casamentos eram cancelados. A cidade foi varrida
por rumores segundo os quais o isis planejava um ataque súbito ao centro de
Bagdá e a tomada da Zona Verde, apesar de sua imensa fortificação. Um jornal da
capital relatou que não menos de sete ministros e 42 parlamentares haviam se
refugiado na Jordânia, junto com suas famílias.
O maior medo
era de que os combatentes do isis, que estavam a apenas uma hora de carro, em
Tikrit e Fal ujah, planejassem seu ataque para coincidir com um levante dos
enclaves sunitas da capital. Estes, embora animados pelas notícias da queda das
províncias sunitas para os insurgentes, temiam que os xiitas se sentissem
tentados a promover um massacre preventivo contra a sua minoria na cidade,
vista como uma potencial quinta coluna. Redutos sunitas, como Adhamiy a, na
margem leste do Tigre, pareciam desertos. Por exemplo: tentei contratar um
motorista recomendado por um amigo. Ele me disse que precisava do dinheiro, mas
era sunita, e o risco de ser parado num posto de controle era grande demais.
“Estou tão amedrontado”, disse, “que nunca saio de casa depois das seis da
tarde”. Era fácil entender a que ele se referia. Homens de aparência sinistra
em roupas civis, que poderiam ser dos serviços de inteligência governamentais
ou de milícias xiitas, haviam surgido subitamente nos pontos de controle,
levando suspeitos. Esses novos oficiais, inteiramente uniformizados, estavam
claramente em posição de dar ordens aos policiais e soldados. Nos escritórios,
trabalhadores sunitas pediam para voltar para casa mais cedo, para não serem
presos. Outros simplesmente deixavam de ir ao trabalho. Ser detido num posto de
controle em Bagdá implica uma carga extra de medo, porque todo mundo,
particularmente os sunitas, recorda o que isso significava durante a guerra
civil sectária de 2006 e 2007: muitos dos pontos de controle eram dominados por
esquadrões da morte, e possuir a carteira de identidade errada significava
execução inevitável. Relatos da imprensa davam conta de que os matadores eram
“homens vestidos como policiais”, mas todo mundo em Bagdá sabe que a condição
de policial e soldado é frequentemente intercambiável. Não havia nada de
paranoico ou irracional na sensação sempre presente de ameaça. O conselheiro de
seguran- ça nacional do Iraque de então, Safa Hussein, disse-me: “Muitas pessoas
pensam que o isis irá sincronizar ataques de dentro e de fora de Bagdá”. Ele
acreditava que tal assalto fosse possível, embora acreditasse que levaria o
isis e os rebeldes sunitas que se juntassem a ele à derrota. Os sunitas são
minoria, mas não seria muito difícil para uma força de ataque proveniente dos
bastiões sunitas na província de Anbar articular-se com os distritos da cidade,
como Amariy a.
Em 8 de
agosto, a aviação norte-americana começou a bombardear o isis no Iraque. Em 23
de setembro, os generais acrescentaram o isis e o Frente al-Nusra,
representante da Al-Qaeda na Síria, à sua lista de alvos. Os combatentes, que
haviam removido seus homens e equipamentos dos edifícios e outros locais que
poderiam ser facilmente atingidos, passaram a táticas de guerrilha, que haviam
adotado com sucesso no passado. Nos Estados Unidos e Grã-Bretanha (que começou
operações aéreas no Iraque em 27 de setembro), houve fanfarra sobre “atingir e
destruir” o isis, mas não apareceu evidência de um plano de longo prazo, além
de conter e ameaçar os jihadistas por meios militares. Como era muito
frequente, durante a intervenção militar norte-americana entre 2003 e 2011, a
mídia colocou foco excessivo sobre as ações dos governos ocidentais como motor
principal dos acontecimentos. Isso foi acompanhado por uma compreensão frágil e
equivocada sobre os novos acontecimentos no Iraque e na Síria e a verdadeira
força que impulsionava a crise nos dois países. Do mesmo modo, houve muita
celebração nas capitais ocidentais quando o Iraque finalmente livrou-se do
primeiro-ministro Nouri alMaliki, substituído por Haider al-Abadi. O novo
governo foi visto como mais inclusivo com árabes sunitas e curdos do que no
tempo de Maliki, mas ainda era dominado pelo partido Dawa – que tinha mais membros
no gabinete do que antes – e por outras legendas religiosas xiitas. Abadi
prometeu aos sunitas que não haveria mais bombardeios em áreas civis sunitas,
mas, algumas semanas depois, Fal ujah foi bombardeada por seis dias, com 28
civis mortos e 118 feridos, segundo o hospital local. O grau da mudança
política foi superestimado e não se deu suficiente atenção ao fato de Abadi não
ter sido capaz, mesmo com os combatentes do isis a poucos quilômetros de Bagdá,
de obter do Parlamento aprovação para suas escolhas nos cruciais ministérios da
Defesa e do Interior. Reidar Visser, um especialista norueguês em assuntos do
Iraque, classificou esse fracasso como “muito mais significativo do que a
grande quantidade de encontros internacionais que estão agora ocorrendo, em
nome da vitória sobre o isis no Iraque”. Um sintoma do estado real das coisas,
àquela época, foi o desfecho de um cerco de uma semana ao redor da base do
exército do Iraque em Saqlawiy ah, vizinha a Fal ujah, ao fim do qual o isis
conquistou a posição, matando ou capturando a maior parte da guarnição que a
defendia. Um oficial iraquiano que escapou teria dito que “dos estimados mil
soldados que havia em Saqlawiy ah, apenas 200 conseguiram fugir”. O isis
anunciou que tinha capturado ou destruído cinco tanques e 41 Humvees, ao
liberar a área “da imundície dos safavidas”. Soldados iraquianos sobreviventes
queixaram-se de que, durante o cerco, não haviam recebido qualquer reforço de
munição ou suprimentos, comida ou água, embora estivessem a apenas 60 quilô-
metros de Bagdá. Em outras palavras, três meses e meio depois da queda de Mosul
e seis semanas depois do início das incursões aéreas norte-americanas, o
exército iraquiano permanecia incapaz de suportar um ataque do isis ou executar
uma operação militar elementar. Assim como em Mosul e Tikrit, o sucesso
aparentemente napoleônico do isis era parcialmente explicado pela incapacidade
do exército iraquiano. Na Síria, os ataques aéreos igualmente levaram o isis a
recuar para operações em estilo de guerrilha, ao lado de duas ofensivas que
lançou na região norte contra enclaves curdos. Algumas unidades rebeldes em
torno de Damasco, capital da Síria, que haviam antes dado a si próprias nomes
islâmicos para atrair financiamento da Arábia Saudita e dos Estados do Golfo,
oportunisticamente os trocaram para títulos de sentido secular, num esforço
para atrair apoio norte-americano. O Frente al- -Nusra, que foi atacado pelos
norte-americanos, para sua própria surpresa, condenou as investidas aéreas e
passou a propor uma ação comum com outros jihadistas contra “as Cruzadas”.
Assim como no Iraque, não seria fácil manipular os sunitas e os rebeldes contra
o isis, agora que os Estados Unidos haviam passado a ser vistos como um aliado
de facto de Assad, apesar das alegações contrárias. • Em junho, muitas pessoas
em Bagdá haviam temido que o isis lançasse um ataque à capital, mas ele nunca
veio. À medida que as atenções do mundo voltaram-se para um avião malásio
derrubado sobre a Ucrânia, supostamente por rebeldes municiados pelos russos, e
para os bombardeios israelenses em Gaza, que mataram dois mil palestinos, o
isis consolidou sua posição na província iraquiana de Anbar, que,
esmagadoramente sunita, espraia-se pelo oeste do Iraque. Na Síria, ele derrotou
ou incorporou a suas fileiras outros grupos rebeldes e capturou diferentes
bases, infringindo perdas graves e obtendo muito equipamento pesado. Foram as
piores derrotas sofridas pelo governo de Damasco desde o iní- cio do levante. O
recém-declarado Califado expandia-se dia a dia. Ele agora abrangia uma área
maior do que a Grã-Bretanha, habitada por cerca de seis milhões de pessoas –
uma população maior do que a da Dinamarca, Finlândia ou Irlanda. Em poucas
semanas de luta na Síria, o isis havia se estabelecido como a força dominante
na oposição, expulsando a filial oficial da Al-Qaeda, Frente alNusra, da
província de Deir Ezzor, rica em petróleo, e executando seu comandante local,
que tentara fugir. No norte da Síria, cerca de cinco mil combatentes do isis
usavam tanques e artilharia capturados do exército iraquiano, em Mosul, para
sitiar meio milhão de curdos em seu enclave em Kobani, na fronteira com a
Turquia. No centro da Síria, perto de Palmira, o isis combateu o exército
oficial ao tomar o campo de gás de al-Shaer, um dos maiores do país, num ataque
de surpresa, que deixou cerca de 300 soldados e civis mortos. Repetidos
contra-ataques do governo finalmente permitiram a retomada do campo, mas o isis
ainda controlava a maior parte da produção de petróleo e gás da Síria. A aviação
norte-americana deveria concentrar-se em explodir as instalações petrolíferas
controladas pelos isis, quando começou seus bombardeios. Contudo, um movimento
que clama estar realizando a “vontade de Deus” e cultua o martírio não irá, por
falta de dinheiro, deixar suas atividades ou sequer sofrer decepção moral
grave. O nascimento do novo Estado foi a mudança mais radical na geografia
política do Oriente Médio desde o Acordo Sy kes-Picot, implementado após fim da
i Guerra Mundial. Entretanto, no início, surpreendentemente, essa transformação
explosiva provocou pouco alarme internacional, ou mesmo entre aqueles, no
Iraque e na Síria, ainda não submetidos à lei do isis. Políticos e diplomatas
tenderam a tratar o isis como se fosse um grupo beduíno de ataque, que aparece
dramaticamente do deserto, obtém vitórias devastadoras e depois se retira para
seus bastiões, deixando o status quo quase intacto. A rapidez extrema e o
caráter imprevisível de sua ascen-são levaram os governantes do Ocidente – e os
locais – a esperarem que a queda do isis e a implosão do Califado pudessem ser
igualmente súbitas e suaves. Como em qualquer grande desastre, o ânimo das
pessoas alternou- -se entre o pânico e um pensamento positivo particular,
segundo o qual a calamidade não era tão ruim como se havia imaginado. Em Bagdá,
com uma população de sete milhões de habitantes, majoritariamente xiita, as
pessoas sabiam o que esperar se as forças do isis, mortalmente antixiitas,
capturassem a cidade, mas se encorajavam com o fato de nada ter acontecido
ainda. “Estávamos apavorados pelo desastre militar no início, mas nós nos
acostumamos a crises nos últimos 35 anos”, disse uma mulher. Mesmo com o isis
na porta, os políticos iraquianos continuaram brincando, enquanto mexiam-se
lentamente para substi-tuir o desacreditado primeiro-ministro Nouri al-Maliki.
“É realmente surreal”, disse-me um ex-ministro iraquia-no. “Quando você
conversa com qualquer líder político em Bagdá, ele fala como se não tivesse
acabado de perder metade do país”. Voluntários foram mandados ao front após uma
fatwa3 do grande aiatolá Ali al-Sistani, o 3. Nota do Editor: pronunciamento no
Islã feito por especialista em lei religiosa. mais influente clérigo xiita do
Iraque. Porém, em meados de julho, esses milicianos haviam retornado a suas
casas, reclamando de que estavam semifamintos, e foram forçados a usar suas
próprias armas e comprar sua munição. O único contra-ataque em larga escala
lançado pelo exército regular e pela recémsurgida milícia xiita foi uma
desastrosa incursão em Tikrit, em 15 de julho – emboscada e derrotada com
perdas pesadas. Não há nenhum sinal de que a natureza disfuncional do exército
iraquiano tenha mudado. “Eles usavam apenas um helicóptero no apoio às tropas
em Tikrit”, afirmou o ex-ministro, questionando: “Por isso, pergunto-me o que
terá acontecido aos 140 helicópteros que o Estado iraquiano adquiriu
recentemente”. A resposta provável é que o dinheiro para as 139 aeronaves
restantes tenha simplesmente sido roubado. Diante desses desastres, a maioria
dos xiitas confortou-se com duas ideias que, se verdadeiras, significariam que
a situação presente era menos perigosa do que parecia. Argumentavam que os
sunitas iraquianos haviam se levantado em revolta e que os lutadores do isis
eram apenas as tropas de choque de vanguarda, num movimento provocado pelas
políticas e ações antissunitas de Maliki. Uma vez que ele foi substituído –
algo que parecia inevitá- vel, consideradas as pressões do Irã, dos Estados
Unidos e da hierarquia clerical xiita –, Bagdá proporia aos sunitas um novo
acordo de partilha do poder, assegurando autonomia regional semelhante à
oferecida aos curdos. Então, as tribos sunitas, os ex-comandantes militares e
os baathistas (do partido secular Baath, que foi liderado por Saddam Houssein),
que haviam permitido ao isis liderar a revolta sunita, iriam voltar-se contra o
aliado feroz. Apesar dos inúmeros sinais contrários, os xiitas em todos os
níveis acreditavam nesse mito reconfortante segundo o qual o isis era fraco e
poderia ser facilmen-te descartado pelos sunitas moderados, assim que estes
alcançassem seus objetivos. Um xiita afirmou para mim: “Tenho dúvidas se o isis
realmente existe”. Infelizmente, o isis não apenas existe, mas é uma
organização eficiente e implacável, sem nenhuma intenção de esperar para que
seus aliados sunitas o traiam. Em Mosul, ele exigiu que todos os combatentes da
oposição jurassem obediência ao Califado ou entregassem suas armas. No final de
junho e início de julho, os militantes detiveram ex-oficiais da época de Saddam
Hussein, inclusive dois generais. Grupos que haviam exibido fotos de Saddam
receberam ordens de retirá-las ou sofreriam as consequências. “Não parece
provável”, disse Aymenn al-Tamimi, um especialista em jihadistas, “que o
restante da oposição militar sunita seja capaz de se voltar contra o isis com
sucesso. Se o fizerem, terão de agir tão rapidamente quanto possível, antes que
o grupo torne-se forte demais”. Ele frisou que a ala supostamente mais moderada
da oposição sunita nada havia feito para impedir que os remanescentes da antiga
comunidade cristã de Mosul fossem forçados a fugir, depois que o isis lhes
disse que deveriam converter-se ao Islã e pagar tributos especiais – ou seriam
mortos. Membros de outras seitas e grupos étnicos, denunciados como xiitas ou
politeístas, eram perseguidos, aprisionados ou assassinados. Parecia estar
passando o momento em que uma oposição não ligada ao isis pudesse representar
um desafio para o grupo. Os xiitas iraquianos ofereceram uma segunda explicação
para a forma como seu exército foi desintegrado: ele teria sido apunhalado
pelas costas pelos curdos. Buscando transferir sua culpa, Maliki afirmou que
Erbil a capital curda, “é um quartel-general para o isis, baathistas, Al-Qaeda
e terroristas”. Muitos xiitas acreditam na explicação, que os faz sentir que
suas forças de segurança (350 mil soldados e 650 mil policiais) fracassaram
porque foram traídas, não porque não puderam lutar. Um iraquiano contou-me que
participou de um iftar4 “com 100 profissionais xiitas, principalmente médicos e
engenheiros, e todos eles assumiram como certa a teoria da punhalada nas
costas, para explicar o que deu errado”. O confronto com os curdos foi
importante porque tornou possível criar uma frente comum contra o isis. Ele
mostrou como, mesmo quando desafiados por um inimigo comum, os líderes xiitas e
curdos são incapazes de cooperar. O líder curdo, Massoud Barzani, teria
apro-veitado a luta do exército iraquiano para obter territórios – inclusive a
cidade de Kirkuk, que tem sido disputada por curdos e árabes desde 2003.
Barzani tem agora uma fronteira comum de mil quilômetros com o Califado e
deveria ter sido um aliado óbvio para Bagdá, onde os curdos são parte do
governo. Ao tentar usar os curdos como bodes expiatórios, Maliki assegurou que
os xiitas não teriam aliados no confronto com o isis, se este retomasse o
ataque em dire- ção a Bagdá. Os sunitas provavelmente não se satisfariam com a
autonomia regional para as suas províncias e uma parcela maior das receitas do
petróleo e dos empregos. Seu levante converteu-se numa completa
contrarrevolução, que busca tomar o poder em todo o Iraque. Nos dias
escaldantes do verão de julho, Bagdá tinha uma atmosfera de guerra farsesca,
como Londres e Paris no final de 1939 ou início de 1940, por razões similares.
4. N. do T.; Refeição de quebra de jejum, no Ramadã, mês sagrado. As pessoas
haviam temido um ataque iminente à capital após a queda de Mosul, mas ele não
havia ocorrido ainda, e os otimistas acreditavam que não aconteceria jamais. A
vida era mais desconfortável do que costumava ser, com apenas quatro horas de
eletricidade em alguns dias, mas ao menos a guerra não havia chegado ao cora-
ção da cidade. Fui jantar no Alwiy ah Club, em Bagdá, e tive dificuldades para
reservar uma mesa. Os líderes xiitas do Iraque não haviam compreendido que sua
dominação sobre o Estado iraquiano, alcançada pela derrubada de Saddam Hussein
pelos norte-americanos, havia terminado. Acabou devido à sua própria
incompetência e corrupção, e porque o levante sunita na Síria, em 2011,
desestabilizou o balanço de forças entre as seitas no Iraque. Na Síria, a
vitória sunita liderada pelo isis no Iraque ameaçou romper o impasse militar.
Antes disso, o presidente sírio, Bashar al-Assad, havia encurralado lentamente
a oposição enfraquecida. Em Damasco e em sua periferia, nas montanhas de
Qalamoun ao longo da fronteira com o Líbano e em Homs, as forças do governo
haviam avançado lentamente e estavam próximas de cercar o grande enclave
rebelde de Aleppo. Porém, as tropas de combate de Assad são notavelmente
reduzidas. Precisam poupar-se de perdas pesadas e têm força para lutar em
apenas uma frente de cada vez. A tática do governo é devastar um distrito
controlado pelos rebeldes com fogo de artilharia e bombas disparadas de helicópteros,
forçar a maior parte da população a fugir, isolar o que se converteu, então,
num mar de ruínas e, ao fim, forçar os rebeldes à rendição. Contudo, a chegada
de grande número de combatentes do isis, bem armados e reforçados por vitórias
anteriores, impunha um novo e perigoso desafio para o regime sírio. Uma teoria
conspiratória muito difundida pelo resto da oposição síria e por diplomatas
ocidentais, segundo a qual o isis e Assad estariam coligados, demonstrou-se
falsa quando o grupo rebelde obteve vitórias no campo de batalha. Do mesmo
modo, em Bagdá, a teoria cons- piratória segundo a qual o isis e os curdos
estariam coligados explodiu dramaticamente quando a facção lançou seu ataque
surpresa contra as regiões curdas, derrotou a peshmerga em Sinjar e forçou os
Yazidis a fugirem, ameaçando a capital Erbil e provocando a reentrada dos
Estados Unidos na guerra do Iraque. À medida que o isis tornou-se a maior força
na oposição síria, colocou o Ocidente e seus aliados regionais – Arábia
Saudita, Qatar, Emirados Árabes e Turquia – diante de um dilema: sua política
oficial era livrar-se de Assad, mas o isis era agora a segunda maior força
militar na Síria. Se o regime caísse, o grupo estaria em boa po-sição para
preencher o vácuo. Como os líderes xiitas em Bagdá, os Estados Unidos e seus
aliados responderam à emergência do isis mergulhando em fantasia. Fingiram que
estavam impulsionando uma “terceira força” de rebeldes moderados sírios para
combater tanto Assad quanto o isis, ao passo que, reservadamente, os diplomatas
ocidentais admitiam que esse grupo na realidade não existia, exceto em bolsões
sitiados. Aymenn alTamimi, especialista na expansão do jihadismo, confirmou que
essa oposição apoiada pelo Ocidente “está ficando cada vez mais frágil”. Ele
acredita que abastecê-la com mais armas não fará muita diferença. Quando seus
ataques aéreos começaram, os norteamericanos passaram a informar o governo
sírio sobre quando e onde eles ocorreriam, mas não fizeram o mes- mo com os
rebeldes “moderados” aos quais publicamente amparavam. Presumivelmente,
calcularam que qualquer coisa que dissessem ao Exército Sírio Livre, a tênue
articulação das unidades rebeldes “moderadas”, chegaria em minutos aos ouvidos
do isis e Frente alNusra. • O medo do isis cresceu em escala internacional após
a queda de Mosul, mas apenas tornou-se profundo e penetrante quando o grupo
cercou as forças curdas em Sinjar, no início de agosto, e pareceu posicionado
para tomar a capital curda, Erbil. Houve um súbito reordenamento de alianças e
prioridades nacionais. Como argumentado anteriormente, os patrocinadores do
isis e de outros movimentos jihadistas no Iraque e na Síria haviam sido a
Arábia Saudita, as monarquias do Golfo Pérsico e a Turquia. Isso não significa
que os jihadistas não tivessem fortes raízes locais, mas sua ascensão foi
crucialmente apoiada por poderes sunitas externos. A ajuda saudita e do Qatar
foi principalmente financeira, em geral por meio de doações privadas. Richard
Dearlove, ex-chefe da agência de inteligência britânica mi6, julga terem sido
centrais na tomada das províncias sunitas no norte do Iraque: “Essas coisas não
acontecem espontaneamente”. Num discurso em Londres, em julho de 2014, ele
disse que a política saudita diante dos jihadistas tem dois motivos
contraditórios: medo de que operem na própria Arábia Saudita e desejo de
usá-los contra os poderes xiitas no exterior. Ele disse que os sauditas são
“profundamente atraídos por qualquer militância que possa efetivamente desafiar
o xiitismo”. Seria improvável que a comunidade sunita no Iraque como um todo
tivesse alinhado-se ao isis sem o apoio que a Arábia Saudita deu, direta ou
indiretamente, para muitos movimentos sunitas. O mesmo ocorre na Síria, onde o
príncipe Bandar Bin Sultan, ex-embaixador saudita em Washington e chefe da
inteligência saudita entre 2012 e fevereiro de 2014, fez tudo o que pôde para
apoiar a oposição jihadista, até sua demissão. Temerosos do que ajudaram a
criar, os sauditas passaram a atuar em outra direção, aprisionando voluntários
jihadistas, ao invés de fazerem vistas grossas, quando eles dirigiam-se à Síria
e Iraque. Mas pode ser tarde demais. Os jihadistas sauditas têm pouca
consideração pela Casa de Saud. Em 23 de julho de 2014, o isis lançou um ataque
contra uma das últimas fortalezas do exército sírio na província de Raqqa, ao
norte. Começou com o ataque suicida de um carrobomba; o veículo era dirigido
por um saudita de nome Khatab al-Najdi, que decorou as janelas do carro com
fotos de três mulheres presas em cárceres sauditas, uma das quais era Hila
al-Kasir, sua sobrinha. O papel da Turquia tem sido diferente, mas não menos
significativo do que o da Arábia Saudita na ajuda ao isis e a outros grupos
jihadistas. Sua ação mais importante é manter aberta a fronteira de 900
quilômetros com a Síria. Isso deu ao isis, Al-Nusra e outros grupos de oposição
uma base de retaguarda segura, de onde chegam homens e armas. Os pontos de
passagem na fronteira foram os lugares mais disputados durante a “guerra civil
dentro da guerra civil” dos rebeldes. Amaior parte dos jihadistas estrangeiros
atravessou a Turquia em seu caminho para a Síria e o Iraque. É difícil obter
números precisos, mas o Ministério do Interior do Marrocos revelou recentemente
que 1.122 jihadistas marroquinos penetraram na Síria, incluindo 900 que o
fizeram em 2013, 200 dos quais foram mortos. A segurança iraquiana suspeita que
a inteligência militar turca possa ter se envolvido pesada-mente no apoio ao
isis quando o grupo reconstituiu-se, em 2011. Relatos da fronteira turca dizem
que o isis já não é bem-vindo, mas com as armas obtidas do exército iraquiano e
a captura de campos de petróleo e gás sírio, a ajuda externa não é mais tão
necessária. Os curdos turcos e sírios acusaram ainda a Turquia de ser,
secretamente, corpo e alma do isis, mas é provavelmente um exagero. Seria mais
correto dizer que esse país soube ver o papel que o isis poderia desempenhar no
enfraquecimento de Assad e dos curdos sírios. Quando o bombardeio da Síria
começou, em setembro, os Estados Unidos jactaram-se de ter constituído uma
coalizão de 40 nações. Esta, porém, além de frouxa, era pesada e seus membros
tinham agendas muito distintas, o que paralisava uma ação comum. Para os
Estados Unidos, a Grã-Bretanha e as outras potências ocidentais, a ascensão do
isis e o Califado são o desastre final. Quaisquer que fossem seus planos, na
invasão do Iraque em 2003 e nos esforços para derrubar Assad na Síria desde
2011, eles não incluíam a criação de um Estado jihadista abrangendo o norte do
Iraque e da Síria, dirigido por um movimento 100 vezes maior e muito melhor
organizado do que a Al-Qaeda de Osama Bin Laden. A guerra contra o terror, em
nome da qual as liberdades civis foram golpeadas e centenas de bilhões de
dólares gastos, fracassou miseravelmente. A crença de que o isis está
interessado apenas em lutas “de muçulmanos contra muçulmanos” é apenas outro
tipo de ilusão. O grupo mostrou que combaterá qualquer um que não adira à sua
variante violenta, puritana e fanática do Islã. O isis difere da Al-Qaeda pelo
fato de ser uma organiza- ção militar bem dirigida, muito cuidadosa em escolher
seus alvos e o momento preciso de atacá-los. Muitos em Bagdá esperavam que os
excessos do isis – por exemplo, explodir mesquitas que julgam ser santuários,
como a de Younis (Jonah), em Mosul – fossem afastar os sunitas. Em longo prazo,
à medida que o gru-po imponha suas normas sociais e religiosas primitivas, isso
pode ocorrer. Vale relatar um incidente, numa área dominada pelo isis, que
ilustra o ânimo popular. A testemunha, uma mulher, relata: Exatamente nesta
tarde, fui, com minha velha mãe, fazer compras e buscar remédios em meu carro,
com roupas finas, que mostravam apenas meus olhos. O que posso fazer? Na semana
passada, uma mulher estava diante de um quiosque e descobriu o rosto para beber
uma garrafa de água. Um deles [isis] aproximou-se dela e a golpeou na cabeça
com um bastão. Não percebeu que o marido estava ao lado. Ele espancou o
agressor, que saiu correndo atirando aleatoriamente para o céu, enquanto as
pessoas, em simpatia, tentavam alcançá-lo para agredi-lo. Esta é apenas uma
história da brutalidade em que estamos vivendo. Numa terra de compulsivos
tabagistas, as fogueiras de cigarros organizadas pelo isis não são populares,
mas se opor ao grupo é muito perigoso. Ademais, apesar de sua brutalidade, ele
garantiu uma vitória para uma comunidade sunita perseguida e esmagada. Mesmo os
sunitas de Mosul, que não gostam do grupo, temem a volta de um governo
iraquiano vingativo e dominado pelos xiitas. Até agora, a resposta militar de
Bagdá à sua derrota foi bombardear Mosul e Tikrit aleatoriamente, o que deixou
clara, para os moradores, a indiferença diante de seu bem-estar ou
sobrevivência. O medo não vai se alterar, mesmo com a substituição de Maliki
por um primeiro-ministro mais conciliatório. Um sunita em Mosul, escrevendo
logo depois que um míssil disparado por forças governamentais explodiu na
cidade, disse-me: “As forças de Maliki já demoliram a Universidade de Tikrit. Ela
foi reduzida a destroços e pedras, como toda a cida-de. Se Maliki puser as mãos
sobre nós, em Mosul, ele irá matar a população ou transformá-la numa horda de
refugiados. Reze por nós”. Tais visões são comuns e tornam menos provável que a
população sunita levante-se contra o isis ou o Califado. Um novo e terrível
Estado surgiu – e ele não desaparecerá facilmente.
Um vídeo
postado na primavera iraquiana de 2014, pelo Estado Islâmico do Iraque, antes
denominado Al-Qaeda no Iraque, mostra jihadistas estrangeiros, provavelmen-te
em algum lugar da Síria, queimando seus passaportes para demonstrar um
compromisso permanente com a jihad. O filme, feito profissionalmente, é
revelador para quem imagina que a guerra em curso na Síria pode ser contida.
Ele mostra, ao contrário, como o conflito na grande faixa de território entre o
rio Tigre e a costa do Mediterrâneo já começou a convulsionar toda a região. A
capa dos passaportes sugere que a maior parte é saudita (verde-grama) ou
jordaniano (azul escuro), embora muitas outras nacionalidades estejam
representadas no grupo. À medida que rasga seu passaporte e o atira às chamas,
cada homem faz uma declaração de fé, uma promessa de lutar contra o governante
de seu país de origem. Um canadense faz um curto discurso em inglês, antes de
mudar para árabe, dizendo: “[Esta] é uma mensagem aos poderes do Canadá e da
América. Estamos chegando, e vamos destruí-los”. Um saudita, um egípcio e um
tchetcheno fazem ameaças similares, sublinhando a intenção declarada dos
jihadistas de atuar em qualquer parte do mundo. O que torna as ameaças
particularmente alarmantes é o fato de o território controlado pelo isis ser
imensamente maior do que o alcançado antes por qualquer grupo ligado à AlQaeda.
Se olhar o
mapa do Oriente Médio, você verá que organizações do tipo Al-Qaeda tornaram-se
uma força poderosa e letal num território que se estende da província de Diy
ala, a nordeste de Bagdá, à província de Lataka, na costa síria do
Mediterrâneo. Todo o vale do Eufrates, no oeste do Iraque e leste da Síria, até
a fronteira com a Turquia, está hoje sob domínio do isis ou da Frente al-Nusra,
representante oficial do que funcionários nor-te-americanos chamam de “coração”
da Al-Qaeda no Paquistão. Grupos do tipo Al-Qaeda no oeste e norte do Iraque e
no norte e leste da Síria agora controlam um território do tamanho da
Grã-Bretanha, e a área em que organizam operações é muito mais extensa. • A
fronteira entre a Síria e o Iraque deixou, em grande parte, de existir. Vale a
pena examinar separadamente a situação nos dois países. No Iraque, quase todas
as áreas sunitas, aproximadamente um quarto do seu território, estão inteira ou
parcialmente sob controle do isis. Antes de capturar Mosul e Tikrit, o grupo
mobilizava seis mil combatentes, mas o número multiplicou-se muitas vezes
depois de a facção ganhar prestígio e capacidade de apelo entre jovens sunitas,
logo após suas vitórias espetaculares. Seu próprio nome – Estado Islâmico do
Iraque e do Levante - expressa sua intenção: construir um Estado islâmico no Iraque
e no “al-Sham”, ou Grande Síria. Não planeja partilhar o poder com ninguém.
Dirigido desde 2010 por Abu Bakr al-Baghdadi, também conhecido como Abu Dua,
provou-se mais violento e sectário do que o “coração” da Al-Qaeda, dirigido por
Ayman al- -Zawahiri, baseado no Paquistão.
Abu Bakr
al-Baghdadi começou a surgir das sombras no verão de 2010, quando se tornou
líder da Al-Qaeda no Iraque, depois que seus antecessores foram mortos num
ataque conduzido por tropas desse país e dos Estados Unidos. A Al-Qaeda no
Iraque andava mal das pernas, já que a rebelião sunita, em que havia antes
desempenhando um papel de liderança, estava sucumbindo. Foi reavivada pela
revolta dos sunitas na Síria, em 2011, e, nos três anos seguintes, por uma
série de campanhas cuidado-samente planejadas, tanto nesse país quanto no
Iraque. Não se sabe até que ponto al-Baghdadi foi diretamente responsável pela
estratégia militar e táticas da Al-Qaeda no Iraque e, posteriormente, do isis.
Ex-funcionários graduados do exército e inteligência iraquianos, à época de
Saddam Hussein, desempenharam um papel central, mas estão sob a liderança geral
de al-Baghdadi. Detalhes da carreira de al-Baghdadi variam segundo a fonte – ou
o próprio isis, ou a inteligência norte-americana ou iraquiana. Porém, o quadro
geral é bastante claro. Ele nasceu em Samarra, uma cidade majoritariamente
sunita ao norte de Bagdá, em 1971. Teve boa educação, com graduação em Estudos
Islâmicos (incluindo Poesia, História e Genealogia), na Universidade de Bagdá.
Uma foto de al-Baghdadi, feita quando era prisioneiro dos norte-americanos em
Bocca Camp, sul do Iraque, mostra um iraquiano normal na faixa dos 25 anos, com
cabelos pretos e olhos castanhos. Acredita-se que seu nome real seja Awwad
Ibrahim Ali al-Badri al-Samarrai. Ele pode ter sido um militante islâmico sob
Saddam, como pregador na província de Diyala, ao norte de Bagdá, onde, depois
da invasão norte-americana de 2003, constituiu seu próprio grupo armado.
Movimentos insurgentes têm motivos fortes para fornecer informação
desencontrada sobre sua estrutura de comando e liderança, mas parece que
al-Baghdadi passou cinco anos, entre 2005 e 2009, prisioneiro dos
norte-americanos. Depois que passou a dirigir a Al-Qaeda no Iraque, o grupo
tornou-se cada vez melhor organizado, emitindo inclusive relatórios anuais
sobre suas operações em cada província iraquiana. Por saber do destino de seus
predecessores na liderança da Al-Qaeda no Iraque, al- -Baghdadi existiu em
extremo sigilo. Poucas pessoas sabiam quem ele era. Os prisioneiros da Al-Qaeda
no Iraque dizem que nunca o encontraram ou que, quando o fizeram, ele usava uma
máscara. Tirando proveito da guerra civil síria, al-Baghdadi enviou combatentes
e fundos ao país, para organizar a Frente al-Nusra, filiado à Al-Qaeda. Ele
separou-se do grupo em 2013, mas manteve controle de uma larga faixa de
território no norte da Síria e Iraque. Contra uma oposição fragmentada e
disfuncional, al-Baghdadi moveu-se rapidamente para se estabelecer como um
líder efetivo, ainda que esquivo. A rápida ascensão do isis, depois que ele
assumiu a liderança, foi em grande medida auxiliada pelo levante sunita em
2011, na Síria. O movimento encorajou os seis milhões de sunitas no Iraque a
agir contra a marginalização política e econômica que sofriam desde a queda de
Saddam Hussein. O isis lançou uma campanha bem planejada em 2013, que incluiu
um assalto exitoso à prisão de Abu Ghraib, no verão iraquiano daquele ano, para
libertar seus líderes e outros combatentes experientes. A sofisticação militar
do isis é muito maior do que a que tinha (mesmo em seu auge, em 2006 e 2007) a
organização tipo Al-Qaeda da qual o grupo emergiu. O isis tem a enorme vantagem
de ser capaz de operar em ambos os lados da fronteira sírio-iraquiana. Embora
na Síria esteja engajado numa guerra civil interjihadis-ta contra a Frente
al-Nusra, o Ahrar al-Sham e outras facções, ele ainda controla Raqqa e boa
parte do leste, exceto os enclaves mantidos pelos curdos, próximos à fronteira
turca. Jessica D. Lewis, do Instituto de Estudos da Guerra, descreveu-o, num
ensaio sobre o movimento jihadista no final de 2013, como “uma organização
extremamente vigorosa, resiliente e capaz, que pode operar de Basra à costa
síria”. Embora o poder crescente do isis fosse óbvio para quem acompanhasse os
fatos, o significado do que estava ocorrendo foi percebido por poucos governos
estrangeiros, mesmo após o vasto choque que se seguiu à queda de Mosul. Ao
expandir sua influência no Iraque, o isis foi capaz de capitalizar dois fatores:
a revolta sunita na vizinha Síria e a marginalização dos sunitas por um governo
liderado pelos xiitas, em Bagdá. Os protestos sunitas, que começaram em
dezembro de 2012, foram inicialmente pacíficos, mas a falta de concessões por
parte do primeiro-ministro Nouri al- -Maliki, somada a um massacre no
acampamento de paz de Hawijah, em abril de 2013, que foi devastado pelo
exército iraquiano e terminou com a morte de mais de 50 manifestantes,
converteu um protesto pacífico numa resistência armada. Nas eleições
parlamentares de abril de 2014, Maliki apresentou a si mesmo, em primeiro
lugar, como o líder dos xiitas que iria enfrentar uma contrarrevolução sunita
com base na província de Anbar. Depois da queda de Mosul, o primeiro-ministro
foi culpado por se recusar a fazer reformas que teriam neutralizado o apelo do
isis, mas ele não foi o único líder xiita a acreditar que os sunitas nunca
aceita-riam a perda de sua antiga posição de comando.
A hostilidade
geral dos sunitas a Maliki, como promotor do sectarismo, havia permitido ao
isis aliar-se com sete ou oito grupos militantes sunitas, com quem antes
travava combate. Maliki não deve ser culpado por tudo o que ocorreu de ruim no
Iraque, mas teve um papel decisivo ao empurrar a comunidade sunita às armas do
isis – algo que talvez, algum dia, lamente. Paradoxalmente, embora tenha se
saído bem nas eleições parlamentares de abril de 2014, ao amedrontar os
eleitores xiitas com o fantasma de uma contrarrevolução sunita, ele agiu como
se isso fosse apenas um truque eleitoral e pareceu não perceber quão próximos
os sunitas estavam de uma insurreição real, na qual o isis serviu como tropa de
choque. Em sua queda, ele ignorou alguns sinais de alerta claríssimos. No
início de 2014, o isis havia tomado Fal ujah, apenas 65 quilômetros a oeste de
Bagdá, assim como vasto território em Anbar, a enorme província que compreende
muito da região oeste do país. Em março, atiradores do grupo desfilaram pelas
ruas de Fal ujah para exibir sua recente captura de veículos norte-americanos
blinda-dos Humvees, antes pertencentes ao exército iraquiano. Foi uma
humilhação final para os norte-americanos que a bandeira negra da Al-Qaeda
tremulasse de novo numa cidade que havia sido capturada pelos marines em 2004,
após uma dura vitória, acompanhada por muita retórica autocongratulatória. O
isis controla agora não apenas a cidade, mas a represa de Fal ujah, o que lhe
permite regular o fluxo do Eufrates, podendo inundar ou secar as cidades ao
sul. Incapaz de desalojá-los pela força, o governo de Bagdá desviou a água do
rio para um velho canal fora do controle dos combatentes, o que evitou uma
crise imediata. No entanto, a luta em Anbar mostrou como o balanço de poderes
mudou em favor do isis. O exército iraquiano, com cinco divisões estacionadas
na província, sofreu uma derrota devastadora, perdendo cinco mil homens, mortos
ou feridos, e mais 12 mil que desertaram. Mais ao norte, em junho de 2014, o
isis, somando forças com grupos sunitas locais, assumiu o controle de Mosul (a
segunda maior cidade do Iraque, com uma população de mais de um milhão de
habitantes), expulsando rapidamente o exército da cidade. Contudo, como frisou
um iraquiano, em muitos aspectos “Mosul já não estava sob autoridade
governamental havia muito tempo”. Antes da tomada, o isis já cobrava impostos
de todo mundo, de vendedores de verduras no mercado a empresas de telefones
celulares e de construção. Segundo uma estimativa, sua renda apenas com essa
cobrança era de oito milhões de dólares ao mês. O mesmo tipo de “tributação” ocorria
em Tikrit, ao norte de Bagdá, onde um amigo relatou que as pessoas não comiam
em nenhum restaurante que não estivesse em dia com os pagamentos ao isis, por
medo de que o local fosse atingido por uma bomba durante o jantar. • Olhando
agora para a Síria: hoje, a oposição armada ao governo Assad é dominada por
jihadistas que desejam estabelecer um Estado islâmico. Aceitam combatentes
estrangeiros e têm uma história sinistra de massacres contra minorias sírias,
especialmente alawitas e cristãos. Com exceção das áreas controladas pelos
curdos, todo o leste do país, inclusive muitos dos campos de petróleo, estão
agora sob controle dos jihadistas. O governo conserva alguns poucos postos,
nessa vasta área, mas não tem forças para recapturá-la.
Diferentes
grupos jihadistas competem uns com os outros na região e, desde o início de
2014, engajaram-se num combate mortífero. Em 2012, o isis fundou a Frente
al-Nusra, captando uma oportunidade em meio à esca-lada rápida da guerra civil
na Síria e temendo que sua própria luta fosse marginalizada. Enviou ao novo
grupo dinheiro, armas e combatentes experimentados. Um ano atrás, tentou
reafirmar sua autoridade sobre o grupo incipiente, que havia se tornado
independente demais, aos olhos dos líderes do isis, buscando enquadrá-lo numa
organização maior, abrangendo Síria e Iraque. A Frente al-Nusra resistiu a esse
esforço e os dois grupos envolveram-se numa complicada guerra civil
interjiha-dista. A Frente Islâmica, poderosa aliança de brigadas de oposição
estabelecida há pouco, apoiada pela Turquia e o Qatar, também está combatendo o
isis, embora com-partilhe seus objetivos de estrita imposição da sharia. No
tocante a temas sociais e religiosos, o isis e a Frente al-Nusra não apresentam
divergências marcantes, ainda que a segunda tenha reputação de ser menos
rígida. No entanto, foram lutadores da Frente al-Nusra em Deir Ezzor, na região
do Eufrates, no leste da Síria, que invadiram uma festa de casamento numa casa
particular, espancando e prendendo mulheres que ouviam música alta e não usavam
vestes islâmicas. Apesar desse conflito, os grupos não jihadistas são hoje
periféricos na oposição síria. Em particular o Exército Livre Sírio (fsa), cujo
braço político já foi designado pelo ocidente como futuro ocupante do poder no
país, está marginalizado. O isis controla a província de Aleppo, a leste,
enquanto boa parte da recente luta nessa cida-de foi liderada pela Frente
al-Nusra e o Ahrar al-Sham, outro movimento tipo Al-Qaeda. Um recente ataque ao
território controlado pelo governo sírio em Latakia, na costa do Mediterrâneo,
teve como pontas de lança jihadistas marroquinos e tchetchenos. Ao mesmo tempo,
combatentes da Frente al-Nusra controlam alguns dos subúrbios de Damasco e um
conjunto de vilas e cidades que se estende até a fronteira turca. A luta entre
o isis e outros jihadistas é na verdade uma disputa por espólios, mais um
reflexo de quão fortes eles são do que um sinal de diferenças em relação a seus
objetivos de longo prazo. • Esse aumento nítido na força e alcance das organizações
jihadistas na Síria e Iraque não havia sido, em geral, destacado até há pouco
por políticos e mídia no Ocidente. A razão principal para isso é que os
governos e suas forças de segurança definem de modo muito estrito a ameaça
jihadista – para eles, restrita às forças diretamente controladas pelo centro
ou “coração” da Al-Qaeda. Isso lhes permite apresentar, em relação a seu
suposto sucesso na chamada “Guerra ao Terror”, um retrato muito mais otimista
do que a situação real permitiria. Na verdade, a ideia de que os únicos
jihadistas com os quais se preocupar são aqueles que têm as bênçãos oficiais da
Al-Qaeda é ingênua e autoenganadora. Ignora, por exemplo, o fato de que o isis
foi criticado pelo líder da Al-Qaeda, Ayman al-Zawahiri, por violência e sectarismo
excessivos. Depois de conversar recentemente com um leque de jihadistas sírios
não diretamente ligados à Al-Qaeda, no sul da Turquia, uma fonte disse-me que
“todos eles, sem exceção, expressaram júbilo pelos ataques de 11 de Setembro e
desejo de que algo semelhante possa acontecer na Europa”.
Grupos
jihadistas ideologicamente próximos à AlQaeda foram rotulados como “moderados”
e suas ações são vistas como coerentes com os objetivos políticos dos Estados
Unidos. Na Síria, os norte-americanos apoia-ram um plano da Arábia Saudita para
abrir uma “frente sul”, baseada na Jordânia, que seria hostil ao governo de
Assad e, ao mesmo tempo, aos rebeldes tipo Al-Qaeda no norte e leste.
Esperava-se que a poderosa, mas supostamente moderada Brigada Yarmouk, que
receberia mísseis antiaéreos da Arábia Saudita, fosse o elemento de liderança
nessa nova formação. Porém, diversos vídeos mostram que a Brigada Yarmouk lutou
frequentemente em colaboração com a Frente al-Nusra, a filiada oficial da
Al-Qaeda. Como era provável que, em meio à batalha, esses dois grupos trocassem
munições, Washington estava efetivamente permitindo que armamento avançado
fosse entregue a seu inimigo mais mortal. Autoridades do Iraque confirmam ter
capturado, do isis, armas sofisticadas, originalmente fornecidas por potências
externas a forças consideradas anti-Al-Qaeda na Síria. O nome Al-Qaeda foi
sempre empregado de modo flexível para identificar um inimigo. Em 2003 e 2004,
no Iraque, enquanto crescia a oposição armada à ocupação pelos Estados Unidos e
Grã-Bretanha, a maior parte dos oficiais norteamericanos atribuía os ataques à
Al-Qaeda, embora muitos fossem executados por grupos nacionalistas e
baathistas. Esse tipo de propaganda ajudou a persuadir quase 60% dos eleitores
norte-americanos, antes da invasão, de que havia uma conexão entre Saddam
Hussein e os responsáveis pelo 11 de Setembro, ainda que não exis-tisse
evidência alguma em favor da hipótese. No próprio Iraque e em todo o mundo
muçulmano, essas acusações beneficiaram a Al-Qaeda, ao exagerar seu papel na
resistência contra a ocupação norte-americana e britânica. Táticas de relações
públicas diametralmente opostas foram empregadas pelos governos ocidentais em
2011, na Líbia, quando foi descartada qualquer similaridade ente a Al-Qaeda e
os rebeldes apoiados pela otan, que lutavam para derrubar o líder líbio,
Muammar Gaddafi. Apenas os jihadistas que tinham um linkoperacional direto com
o “coração” da Al-Qaeda sob Bin Laden foram considerados perigosos. A falsidade
da alegação segundo a qual os jihadistas contrários a Gaddafi na Líbia eram
menos ameaçadores do que aqueles em contato direto com a Al-Qaeda teve de ser
exposta, ainda que de maneira trágica, quando o embaixador norte-americano
Chris Stevens foi morto por combatentes jihadistas em Benghazi, em setembro de
2012. Eram os mesmos “guerreiros” elogiados pelos governos e mídia ocidentais
por seu papel no levante contra Gaddafi. A Al-Qaeda é, há muito tempo, uma
ideia, muito mais do que uma organização. Por cinco anos, a partir de 1996, ela
teve de fato quadros, recursos e acampamentos no Afeganistão, mas tudo isso foi
eliminado após a derrubada do Talibã, em 2001. Em seguida, o nome Al-Qaeda
converteu-se principalmente num chamado à ação, num conjunto de crenças e
costumes islâmicos centrado na criação de um Estado islâmico, na imposição da
sharia, na submissão das mulheres e numa guerra sagrada contra outros
muçulmanos, em especial os xiitas, considerados hereges que merecem a morte. No
centro dessa doutrina de guerra está uma ênfase no autossacrifício e no
martírio, como símbolos de fé e compromisso religiosos. Isso resultou na
mobilização de homens-bombas, destreinados, mas fanatizados, com efeitos
devastadores. Sempre foi do interesse dos Estados Unidos e de outros governos
apresentar a AlQaeda como uma organização com uma estrutura de comando e
controle como um mini-pentágono ou como a máfia norte-americana. É uma imagem
reconfortante para o público, já que grupos organizados, ainda que demoníacos,
podem ser rastreados e eliminados por meio do encarceramento ou morte. Muito
mais alarmante é a realidade de um movimento cujos aderentes são
autorrecrutados e podem despontar em qualquer parte. O grupo de militantes de
Osama Bin Laden, que ele não chamava de Al-Qaeda até o 11 de Setembro, era
apenas um, dentre muitas facções jihadistas, há 12 anos. Hoje, porém, suas
ideias e métodos são predominantes entre os jihadistas, devido ao prestígio e
publicidade que obtiveram por meio da destruição das Torres Gêmeas, da guerra
no Iraque e da demonização por Washington, como a fonte de todo o mal
anti-americano. Atualmente, as diferenças entre as crenças dos jihadistas estão
se es-treitando, independentemente de serem ou não ligados ao núcleo da
Al-Qaeda. Não é surpreendente que os governos prefiram uma visão de fantasia da
Al-Qaeda. Ela lhes permite cantar vitórias quando são capazes de eliminar os
membros e aliados mais famosos da rede terrorista. Frequentemente, tratam-se
essas pessoas eliminadas como se tivessem patentes quase militares, como “comandantes
de opera- ções”, para sublinhar o significado de tirá-las de combate. O cúmulo
desse aspecto altamente publicizado, mas quase irrelevante, da “Guerra ao
Terror” foi o assassinato de Bin Laden, em Abbottabad, Paquistão, em 2011. O
fato permitiu ao presidente Obama aparecer diante do público norte-americano
como o homem que presidiu a caça ao líder da Al-Qaeda. Em termos práticos, no
entanto, sua morte teve pequeno impacto sobre os grupos jihadistas do tipo
Al-Qaeda, cuja maior expansão ocorreu depois. • As decisões centrais que
permitiram à Al-Qaeda sobreviver e, em seguida, expandir-se, foram tomadas nas
horas que se sucederam ao 11 de Setembro. Quase todos os elementos
significativos no plano de explodir aviões nas Torres Gêmeas e em outras edificações
icônicas para os Estados Unidos conduziam à Arábia Saudita. Bin Laden era
membro da elite saudita e seu pai fora um aliado próximo da família real
saudita. Citando um relatório da cia de 2002, o documento oficial sobre o 11 de
Setembro conta que a Al-Qaeda dependia, para seu financiamento, de “diversos
doadores e captadores de recursos, em especial nos países do Golfo e
particularmente na Arábia Saudita”. Os investigadores encarregados do relatório
tiveram sua ação repetidamente limitada, quando buscaram informações na Arábia
Saudita. Entretanto, o presidente George W. Bush aparentemente nunca sequer
considerou apontar os sauditas como responsáveis pelo ocorrido. A saída de
líderes sauditas, inclusive parentes de Bin Laden, dos Estados Unidos foi
facilitada pelo governo norte-americano nos dias que se sucederam ao 11 de
Setembro. Ainda mais significativo: em nome da “segurança nacional”, 28 páginas
do relatório da comissão encarregada de investigar os acontecimentos, dedicadas
às relações entre os terroristas e a Arábia Saudita, foram suprimidas e nunca
publicadas, apesar das promessas do presidente Obama em sentido contrário. Em
2009, oito anos após o 11 de Setembro, um despacho da secretária de Estado
norte-americana, Hil ary Clinton, revelado pelo Wikileaks, queixava-se de que
doadores sauditas constituíam a fonte mais significativa no financiamento de
grupos de terror sunitas em todo o mundo. Contudo, a despeito dessa admissão
privada, os Estados Unidos e a Europa Ocidental permaneceram indiferentes aos
pregadores sauditas, cuja mensagem, difundida a milhões por satélite, tv,
YouTube e Twitter, pedia o assassinato de xiitas como heréticos. Tais apelos
foram feitos quando as bombas da Al-Qaeda estavam dizimando pessoas nos bairros
xiitas no Iraque. Um sub-título em outro despacho do Departamento de Estado, no
mesmo ano, pergunta: “Arábia Saudita – antixiitismo como Política Externa?”.
Agora, cinco anos mais tarde, grupos apoiados pelos sauditas acumularam um
histórico de sectarismo extremo contra muçulmanos não sunitas. O Paquistão ou,
melhor dizendo, a inteligência militar paquistanesa, na forma do Inter-Services
Intelligence, foi o outro pai da Al-Qaeda, do Talibã e dos movimentos
jihadistas em geral. Quando o Talibã estava se desinte-grando sob o peso dos
bombardeios norte-americanos em 2001, suas forças no norte do Afeganistão foram
emboscadas por tropas contrárias a ele. Antes de se renderem, centenas de
membros do Inter-Services Intelligence, ins-trutores e conselheiros militares
foram apressadamente evacuados por ar. Apesar das evidências mais claras sobre
o patrocínio do Inter-Services Intelligence ao Talibã e aos jihadistas em
geral, Washington recusou-se a enfrentar o Paquistão. Assim, abriu caminho para
o ressurgimento do Talibã após 2003 – o que nem os Estados Unidos nem a otan
foram capazes de reverter. A “Guerra ao Terror” fracassou porque não visou o
movimento jihadista como um todo e, acima de tudo, não focou na Arábia Saudita
e Paquistão, os dois países que impulsionaram o jihadismo como um credo e um
movimento. Os Estados Unidos não o fizeram porque esses países eram importantes
aliados, que não deveriam ser ofendidos. A Arábia Saudita era um mercado enorme
para as armas norte-americanas e cultivou, até o ponto de comprar, membros influentes
do establishment políti-co norte-americano. O Paquistão é uma potência nuclear
com população de 180 milhões de habitantes e laços militares estreitos com o
Pentágono. O ressurgimento espetacular da Al-Qaeda e seus semelhantes ocorreu
apesar da imensa expansão do or- çamento dos serviços de inteligência
norte-americanos e britânicos, após o 11 de Setembro. Desde então, os Estados
Unidos, seguidos de perto pela Grã-Bretanha, travaram guerras no Afeganistão e
no Iraque e adotaram procedimentos normalmente associados a Estados policiais –
como encarceramento sem julgamento, detenção, tortura e espionagem doméstica.
Os governos conduzem a “Guerra ao Terror” alegando que os direitos dos cidadãos
precisam ser sacrificados para assegurar a segurança de todos. Apesar dessas
medidas de segurança controversas, os grupos contra os quais elas se dirigem
não foram derrotados – ao contrário, fortaleceram-se. No tempo do 11 de
Setembro, a Al-Qaeda era uma organização pequena e em geral ineficaz. Em 2014,
havia muitos grupos poderosos do tipo Al-Qaeda. Em outras palavras, a “Guerra
ao Terror”, que moldou muito da paisagem política desde 2001, claramente
fracassou, mas, até a queda de Mosul, ninguém havia prestado muita atenção.
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