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terça-feira, 2 de agosto de 2016

A ORIGEM DO ESTADO ISLÂMICO O FRACASSO DA “GUERRA AO TERROR” E A ASCENSÃO JIHADISTA




Histórias não contadas O Selo Histórias Não Contadas da Autonomia Literária é, sem dúvida, o espaço dedicado às narrativas malditas, ocultadas pelas fontes oficiais ou simplesmente ignoradas na arena da conflituosa sociedade global. Para tanto, recorremos ao trabalho de jornalistas investigativos, testemunhas oculares das histórias e pesquisadores desses eventos. Aqui, nosso objetivo é ajudar a desmontar mitos e superstições sobre fatos e figuras em destaque na mídia global trazendo-os à luz do debate público. Na era da informação total, vivemos sob a ditadura das versões e pontos de vista oficiais, a qual nos dá uma visão cômoda e nem sempre verdadeira do nosso tempo. É preciso, pois, realizar um esforço radical: encontrar e publicar os testemunhos desses insiders, pois a cura de muitos males demanda apenas a luz do Sol.




cidades  e campos de petróleo no Iraque e na síria
Fonte: BBC
zonas  de atividade do estado islâmico
 fonte: BBC
Prefácio: Os 100 diasx
 Apresentação:
UMA Serpente ENTRE AS PEDRAS –
PATRICK COCKBURN -

Reginaldo Nasser
 Pelas lentes da mídia ocidental, o Estado Islâmico (isis) aparece como um grupo irracional que age sem motivos políticos, movido apenas pelo ódio religioso. As imagens de vídeos com requintes técnicos e estéticos produzidos pelos próprios militantes decapitando reféns são narradas, à exaustão, pelos meios de comunicação como sendo combatentes furiosos que não poupam mulheres ou crianças. Construiu-se uma imagem no Ocidente, desde o início da década de 1990, e que se intensifica atualmente, que esses jihadistas são capazes de fazer as piores atrocidades. Evoca-se, no imaginário do Ocidente, semelhanças com um passado longínquo, associando-os às “tribos bárbaras” que varreram o Império Romano ou às hordas mongóis de Gengis Khan que devastaram cidades inteiras, massacrando seus habitantes como se estivéssemos diante de um choque de civilizações. Em curto espaço de tempo, o isis destronou aquela que, até então, era considerada a maior ameaça à segurança internacional, responsável pelos atentados terroristas no dia 11 de setembro de 2001. O grupo Al-Qaeda já era coisa do passado. O impacto desse fenômeno sobre a comunidade internacional foi devastador. Nos Estados Unidos, Canadá, Europa e até mesmo no Brasil, começou-se a especular sobre a possibilidade da existência de células do grupo, cooptando jovens ou mesmo planejando ataques terroristas. Um dos autores do atentado ao semanário Charlie Hebdo, em 2014, em Paris, revelou com orgulho o pertencimento ao grupo. Em vídeo, que teve ampla circulação pelas redes sociais, um jovem canadense aparece rasgando seu passaporte, fazendo ameaças, em inglês, e depois, em árabe: “[Esta] é uma mensagem aos poderes do Canadá e da América. Estamos chegando, e vamos destruí-los”. Mas, afinal de contas, quem são esses terroristas que conseguiram, de forma inédita, unir Estados Unidos e Irã, adversários de longa data, sem ter um único aliado no cenário internacional? Apesar de realmente usar táticas cruéis, próprias de um grupo terrorista, como conseguem a adesão voluntária de milhares de jovens europeus? Como foi possível ocupar um território de tamanho equivalente à Jordânia, com cerca de oito milhões de pessoas, incorporando partes significativas da Síria e do Iraque? Pois bem, é a ascensão desse novo ator numa complexa rede de conexões com atores internacionais (Estados Unidos, França e Grã- Bretanha) e regionais (Arábia Saudita, Turquia e Paquistão), bem como seus impactos políticos, sociais e humanitários no xadrez geopolítico do Grande Oriente Médio, que PatrickCockburn, um dos mais credenciados jornalistas na região, ao lado de Robert Fisk, se esmera em explicar em linguagem clara e objetiva. Pode-se dizer que PatrickCockburn mantém vivo o legado de seu pai, o lendário jornalista Claud Cockburn, que sugeria que a única forma de um correspondente internacional fazer seu trabalho, com dignidade, era repetir continuamente a pergunta: “Por que esses bastardos estão mentindo para mim?”. Cockburn examina os caminhos dos diversos atores no Oriente Médio com uma lupa, indo aos mínimos detalhes, mas sem deixar o fracasso da “Guerra ao Terror” e a ascensão JiHadisTa  de conjugar essas informações com uma visão mais ampla do processo histórico em que as grandes potências e os poderes regionais imprimem sua marca. Em certos trechos da obra temos a impressão de que se trata de um livro de história, em outros, de um romance histórico e, algumas vezes, nota-se até mesmo a linguagem do pesquisador acadêmico preocupado com a adequação dos conceitos. Conhecedor como poucos da região, Patrick Cockburn fez dezenas de viagens à Síria e ao Iraque, durante os últimos vinte anos, recolhendo informações extremamente persuasivas que ganham um colorido especial por meio de relatos de diálogos e entrevistas com oficiais da inteligência, jornalistas e, principalmente, com os homens e mulheres que vivem o cotidiano da violência. O líder do isis, Abu Bakr al-Baghdadi, descreveu a estratégia militar de seu grupo como “uma serpente que se move entre as pedras” usando suas forças como tropas de assalto quando se trata de atingir alvos considerados frágeis, mas evitando se atolar em batalhas prolongadas quando a correlação de forças se equilibra. Creio que o trabalho meticuloso de Cockburn é acompanhar a serpente desde seu nascimento, desvendar quem a alimenta, como ela se move e quais são as condições do ambiente que permite com que se fortaleça e se prolifere. Assim como outros jornalistas e analistas internacionais, Cockburn não foge à regra ao usar o termo jihadismo para relacionar essa ideologia às ações dos grupos terroristas islâmicos, em geral, e ao isis em particular. Embora não comprometa significativamente sua rica análise sobre o isis, creio que, por vezes, o uso indiscriminado do termo permite leituras menos atentas às especificidades dos grupos que a utilizam, o que acaba por atribuir à religião um peso maior do que realmente possui nas ações violentas. A palavra árabe “jihad” é muitas vezes traduzida como “guerra santa”, mas, em um sentido puramente linguístico, a palavra significa luta ou esforço. Em sentido religioso, como descrito pelo Alcorão, “jihad” tem muitos significados. Pode se referir aos esforços pessoais para ser um bom muçulmano ou crente, bem como o trabalho para informar as pessoas sobre a fé no Islã. Assim, é preciso considerar a interpretação e o uso arbitrário que os diferentes grupos islâmicos fazem do conceito de jihad. Importante notar que Cockburn alerta para o fato de que a ideologia da Al-Qaeda e do isis é uma interpretação extremada do wahabismo, a ideologia oficial do Estado saudita, uma versão fundamentalista do Islã, nascida no século xviii, que enxerga os xiitas e sulistas como não muçulmanos que devem ser perseguidos assim como cristãos e judeus. Os maiores responsáveis pela difusão do wahabismo no mundo são os países árabes aliados dos governos ocidentais: Arábia Saudita, Catar e Emirados Árabes. Citando uma autoridade em questões islâmicas, Cockburn vai direto ao ponto: “Se você quiser fundar um seminário ou mesquita em qualquer lugar do mundo, não há muitos locais fora da Arábia Saudita em que possa obter 30 mil dólares”. Se a mesma pessoa desejar opor-se ao wahabismo, será uma luta ingrata. Aliás, o controverso papel da Arábia Saudita na política do Oriente Médio é um dos temas principais perseguidos por Cockburn em todo o livro. O jornalista chega a afirmar que o jihadismo não será derrotado se os Estados Unidos e seus aliados não atuarem de forma decidida contra a influência que têm na promoção do extremismo islâmico. De um lado, a política saudita age por dois motivos contraditórios diante dos jihadistas: medo o fracasso da “Guerra ao Terror” e a ascensão JiHadisTa  de que operem na própria Arábia Saudita e desejo de usá-los contra os poderes xiitas no exterior. Os Estados Unidos também agem de modo contraditório em relação à Arábia Saudita: medo do suporte financeiro e político que dão aos jihadistas e crença de que manter os sauditas como aliados é imprescindível para a estabilidade geopolítica na região. Nada mais, nada menos do que o vice-presidente norte- americano, Joe Biden, chegou a afirmar: “A Arábia Saudita, a Turquia e os Emirados Árabes estavam muito determinados a derrubar Assad e, em essência, provocar uma guerra por procuração entre sunitas e xiitas. O que fizeram? Destinaram centenas de milhões de dólares e dezenas de toneladas de armas a qualquer um disposto a lutar contra Assad. Porém, as pessoas que estavam sendo abastecidas eram da Al-Nusra, Al-Qaeda e extremistas da jihad vindos de outras partes do mundo”. Mesmo diante dessa evidência, os Estados Unidos, de Bush a Obama, nunca tomaram qualquer atitude mais drástica. Mas, se a ideologia adotada é importante para compreender a violência e o sectarismo propagado pelo isis, Cockburn não descuida dos aspectos estruturais (sociais e econômicos) que permitem a realização dessa mesma ideologia. No Iraque, o isis tem atraído o apoio de membros da minoria sunita que foi marginalizada sob o domínio do governo autoritário de Nouri al-Maliki, o primeiro-ministro xiita, patrocinado por Washington e Teerã. O apadrinhamento baseado em partido, família ou comunidade determinava quem deveria conseguir emprego e ser visto como cidadão, e quem seria um pá- ria. Cockburn procura dar vida a esses aspectos recordando uma experiência pessoal que teve no Iraque: “Tentei contratar um motorista recomendado por um amigo. Ele medisse que precisava do dinheiro, mas era sunita, e o risco de ser parado num posto de controle era grande demais. ‘Estou tão amedrontado’, disse, ‘nunca saio de casa depois das seis da tarde’.” Assim, a hostilidade disseminada aos sunitas pelo governo iraquiano, como promotor do sectarismo, permitiu ao isis aliar-se com vários grupos militantes sunitas, com quem antes travava combate. Esse sectarismo governamental difundiu a percepção entre os sunitas de que sua única chance de sobreviver e mesmo de vencer a luta pelo poder no Iraque é enfrentar a hegemonia xiita. O rápido avanço do Estado Islâmico, em todo o norte do Iraque, em junho de 2014, capturando sua segunda maior cidade, Mosul, e ameaçando avançar em direção a Bagdá, atordoou especialistas em segurança internacional e lideranças políticas do Ocidente. O colapso e verdadeira debandada de milhares de soldados do exército iraquiano era uma demonstração cabal do fracasso da chamada política de reconstrução dos Estados Unidos e seus aliados no Iraque, depois de dez anos de ocupação e mais de 100 bilhões de dólares investidos em infraestrutura e segurança. Esse fato é atualmente comentado por todos como decisivo para a ascensão do grupo, mas é importante lembrar que, mesmo antes da queda de Mosul, PatrickCockburn intuiu que algo estava por vir. Em 2013, ele elegeu al-Baghdadi como o “homem do ano” no Oriente Médio no jornal em que é colaborador ( The Independent). A atenção de Cockburn já se dirigia para o grupo que vinha obtendo muitas vitórias simbólicas, como a captura de Fal ujah (a cidade onde houve batalhas sangrentas contra forças anglo-americanas durante a ocupação do Iraque), ou o assalto à prisão de Abu Ghraib (local das torturas praticadas pelas forças o fracasso da de segurança dos Estados Unidos). Cockburn julgava que, provavelmente, essas vitórias impulsionariam o credenciamento do isis junto à população iraquiana sunita marginalizada. As fontes e as informações colhidas por Cockburn ganham uma dimensão toda especial nos seus relatos, não como curiosidades de um suposto exotismo árabe-islâmico, mas sim como frestas de luz que permitem iluminar os tortuosos caminhos dos conflitos armados no Oriente Médio. Segundo uma fonte iraquiana de Cockburn, em muitos aspectos o governo iraquiano já não detinha o poder mesmo antes da queda militar de Mosul. Segundo essa mesma fonte, o isis já cobrava impostos de vendedores de verduras no mercado, de empresas de telefones celulares e de construção. Essas informações permitiram Cockburn aferir que a renda com estas cobranças alcançava por volta de 8 milhões de dólares ao mês. Aliás, ele observa o mesmo tipo de “tributação” em Tikrit, onde um amigo relatou que as pessoas não comiam em nenhum restaurante que não estivesse em dia com os pagamentos ao isis, por medo de que o local fosse atingido por uma bomba durante o jantar. Cockburn cita outra fonte iraquiana que lhe permitiu compreender o intrincado jogo dos atores internacionais como um dos fatores que permitiu a ascensão isis. De acordo com essa revelação, no período de 2011 a 2013, a inteligência militar turca estimulou experientes oficiais iraquianos da era Saddam a trabalhar com o movimento jihadista desempenhando um papel crucial no planejamento militar cuidadoso e no aprimoramento tático do grupo. O mesmo passou a ocorrer na Síria após os movimentos da Primavera Árabe quando, de acordo com um ex-comandante do Exército Sírio Livre (fsa) citado por Cockburn, funcionários das agências de inteligência dos Estados Unidos, Grã- Bretanha e França, e representantes dos governos da Arábia Saudita, Emirados Árabes, Jordânia e Qatar circulavam livremente nas fileiras da oposição síria. Do alto de sua experiência, Cockburn questiona o próprio termo “repórter de guerra”, que dá a falsa impressão de que os conflitos podem ser melhor compreendidos com uma cobertura centrada unicamente na descrição do combate militar, pois é fundamental que seja interpretado sob o prisma da política. E exemplifica: “Em 2003, as tvs mostraram colunas de tanques iraquianos esmagados e em chamas, após os ataques norte-americanos na autoestrada principal a norte de Bagdá. Se não fosse pelo cenário de deserto, os telespectadores poderiam estar observando imagens do exército alemão derrotado na Normandia, em 1944. Porém, subi em alguns dos tanques e pude constatar que haviam sido abandonados muito antes de serem atingidos. Era algo importante, porque mostrava que o exército iraquiano não estava disposto a lutar e morrer por Saddam. Também permitia prever o futuro da ocupação”. Outro risco que acompanha os “repórteres de guerra” é que há uma tendência a dramatizar os eventos em prol da audiência e em prejuízo da complexidade da história. Quem não se sente atraído pelas cenas que mostram bombas explodindo e veículos militares em chamas ao fundo? O problema,  adverte Cockburn, é que essas “ultrassimplificações” articuladas à propaganda política dos governantes permitem apresentar os conflitos como uma batalha entre o bem e o mal, suprimindo toda e qualquer forma de nuances que possam existir nessas situações.
Dizer que em todas as guerras há uma diferença entre o que é reportado e o que de fato ocorreu é senso comum, mas nas guerras travadas no Afeganistão, Iraque, Líbia e Síria nos últimos 10 anos houve informações completamente erradas, inclusive sobre a identidade dos vitoriosos e dos derrotados – o que, segundo Cockburn, talvez explique “por que houve tantas surpresas e reversões inesperadas dos fatos”. Cockburn observa que boa parte da mídia ocidental difundiu a crença equivocada de que as inovações tecnológicas mudavam rapidamente as realidades políticas. Os jornalistas estrangeiros se juntaram à oposição na demonização dos governos de Assad, na Síria, e Muammar Gaddafi, na Líbia, sem se preocupar em investigar quem eram os opositores. De forma sarcástica, Cockburn observa que era como se um “admirável mundo novo” estivesse sendo criado em alta velocidade nas telas das tvs. Novamente destilando ironia, Cockburn dá sua dica para o sucesso: “O ingrediente essencial de uma boa história de atrocidades é ser chocante e não refutável imediatamente”. Entre tantas ilustrações sobre histórias fraudulentas relatadas por Cockburn, cito esta: “Um correspondente internacional visitou um campo de refugiados sírios onde encontrou uma criança de dez anos assistindo a um clipe de YouTube mostrando dois homens sendo executados com uma motosserra. A narração dizia que as vítimas eram sunitas sírios e os assassinos, alawitas. Na verdade o filme era do México e os assassinatos haviam sido praticados pelo cartel das drogas”. Cockburn mostra como uma série de erros cometidos pelos Estados Unidos e seus aliados ocidentais criou as condições para o surgimento do isis. Em primeiro lugar, a invasão do Iraque em 2003 fez com que os sunitas fossem marginalizados. Em segundo lugar, o apoio ocidental aos insurgentes na Síria criou o cenário propício para tipo de combate implementado pelo isis. Assim, conclui que a “Guerra ao Terror” promovida pelos Estados Unidos foi um grande fracasso. Isso é verdade, desde que você acredite que realmente era esse o objetivo visado pelos políticos e agentes de segurança norteamericanos e britânicos. Sem negar completamente essa versão, creio que também é possível levantar outra hipótese que não aparece no livro. Não é conveniente, para alguns, ter um inimigo permanente que se transmuta em formas cada vez mais assustadoras? Que o diga a indústria bélica, que precisa justificar seu crescimento, as empresas privadas de segurança, que precisam justificar sua expansão, e os ideólogos da ocupação do Oriente Médio, que precisam justificar a presença militar norte-americana na região. Cockburn mostra, fartamente, exemplos de ações militares e diplomáticas completamente equivocadas por parte dos Estados Unidos, que, ao invés de derrotar o isis, só o fortaleceu. Sim, é possível e provável que erros de análise e de compreensão de fenômenos sociais e políticos sejam cometidos, mas será que é razoável supor que o aparato diplomático-militar dos Estados Unidos seja tão despreparado a ponto de cometer, reiteradamente, erros grosseiros? Ou podemos ter também como hipótese que talvez o fracasso da guerra possa ser de fato o seu sucesso? Os líderes políticos e generais em Washington e Londres podem estar recebendo pesadas críticas domésticas por seus erros no Iraque e Síria, mas alguns analistas do mundo árabe observam que, na verdade, estão sendo muito bem-sucedidos na execução de um plano para dividir o país. No fundo, a unidade entre o fracasso da “Guerra ao Terror” a resistência sunita e xiita sempre foi motivo de preocupação por parte desses líderes. Seja como for, o fato é que a ascensão meteórica do isis e sua declaração de restabelecer o Califado são algo sem precedentes na história do sistema estatal árabe que teve início após o fim do Império Otomano e a Conferência de Paz de Paris, em 1919. Pela primeira vez, um ator não estatal islâmico, que agora é simultaneamente nacional e transnacional, esculpiu uma nova unidade política no mundo árabe, onde as fronteiras permaneceram relativamente inalteradas ao longo de todo o século xx. Embora mencione em vários momentos, Cockburn não explora em profundidade o surgimento de uma nova forma de espacialidade política ligada à criação do Estado Islâmico no Oriente Médio, negando claramente a essência geográfica do campo das relações internacionais: o Estado com um território claramente delimitado. Ainda que se possa duvidar de sua durabilidade, trata- -se, evidentemente, de uma demonstração da fraqueza do processo de criação artificial de estados-nação na região do Oriente Médio, caracterizado pelo arroubo das potências ocidentais em construir um sistema político na região à sua imagem e semelhança. O fracasso do nacionalismo como uma ideologia política no Oriente Médio influenciou o surgimento de movimentos radicais islâmicos que reivindicam a constituição de uma nova ordem política nesses territórios: o Califado. O colapso do Iraque e da Síria como estado-nação tem dado a estes movimentos força para consolidar o seu projeto e alargar os seus objetivos sobre um território que pode cobrir a região do Oriente Médio e além. De fato, este espaço geopolítico deve ser analisado também sob a perspectiva do que novas possibilidades de exploração de recursos (petróleo, principalmente) podem dar ao novo Califado em termos de poder dentro do sistema internacional. O isis é especialista em estimular o medo. Os vídeos que produz, de seus combatentes executando soldados e pilotos de avião, tiveram um papel importante para aterrorizar e desmoralizar seus inimigos. Entretanto, esse medo também pode unir um amplo arco de oponentes do isis que eram antes hostis uns em relação aos outros. Como nota Cockburn, se o apelo do Estado Islâmico aos muçulmanos sunitas na Síria, no Iraque e em todo o mundo funciona, em parte, com base num sentimento de que suas vitórias são presentes de Deus e inevitáveis, isso também pode ser sinal de fragilidade, já que qualquer derrota pode afetar a alegação de apoio divino. Ainda que seja improvável cumprir a promessa de garantir a viabilidade de seu Califado no Iraque e na Síria contra o poderio militar dos Estados Unidos e sua coalizão dentro do território governado por dois governos xiitas, sua ideologia provavelmente continuará a inspirar seguidores. Quer se trate de um isis abrigado nos centros urbanos de Mosul e Raqqa ou espalhado nas periferias, ainda assim será capaz de lançar ataques esporádicos dentro das cidades iraquianas e sírias, em particular por meio de carros-bombas e ataques suicidas. O Estado Islâmico poderia rasgar o Oriente Médio e causar ainda mais agitação para as gerações futuras, onde os Estados não têm uma ideologia que lhes permite competir como um foco de lealdade baseada em seitas religiosas ou grupos étnicos. A capacidade do isis para apelar a um imaginário islâmico através de fronteiras e sua restauração do Califado representa a cristalização de uma ideologia jihadista que se desenvolveu ao longo dos últimos trinta anos. Seu líder, Abu Bakr al-Baghdadi, propaga que o Califado é um tipo de Estado onde “árabes e não árabes, homens brancos e negros, orientais e ocidentais são todos irmãos... A Síria não é para os sírios e o Iraque não é para os iraquianos. A Terra é de Alá”. O grande pensador da guerra, C. Von Clausewitz, julgava que sempre reinará uma grande incerteza durante os confrontos armados, já que é simplesmente impossível ter conhecimento pleno de todas as informações em jogo. Como consequência, toda ação, em certa medida, será planejada na “névoa da guerra”, que pode dar aparência deturpada às coisas. Portanto, o leitor não deve se espantar se, mesmo após a leitura desse livro, ainda reinem algumas incertezas. É impossível dissipar a névoa, mas o leitor perceberá com certeza que, após a leitura dessa obra, poderá acompanhar com mais segurança as inúmeras peças em movimento nesse verdadeiro xadrez geopolítico do Oriente Médio. São Paulo, Junho, 2015 • Reginaldo Nasser é mestre em Ciência Política (Unicamp) e doutor em Ciências Sociais (puc-sp). Professor do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais – San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp e puc) e chefe do Departamento de Relações Internacionais da puc-sp.
No verão de 2014, ao longo de 100 dias, o Estado Islâmico do Iraque e do Levante1 (isis) transformou a política do Oriente Médio. Combatentes jihadistas combinaram fanatismo religioso e expertise militar para alcançar vitórias espetaculares e inesperadas contra forças do Iraque, da Síria e dos curdos. O isis chegou a controlar a oposição sunita aos governos de Bagdá e Damasco e se espalhou por toda parte, do Curdistão do Iraque à fronteira desse país com o Irã e às periferias de Aleppo, maior cidade síria. Durante essa rápida ascensão, agiu como que intoxicado por seus próprios triunfos. Não se preocupou com a expansão de sua lista de inimigos, que passou a incluir nações como os Estados Unidos e o Irã, adversários de longa data, mas unidos pelo medo comum dos fundamentalistas. A Arábia Saudita e as monarquias sunitas do Golfo Pérsico aliaram-se aos ataques aéreos dos norte-americanos sobre o isis na Síria, porque sentiram que o grupo representava ameaça à sua própria sobrevivência e status político no Oriente Médio, maior do que qualquer outro fato, desde que Saddam Hussein invadiu o Kuwait em 1990. 1. Nota do Tradutor: isis na maior parte da imprensa, mas também escrito isil na sigla em inglês para Islamic State on Iraq and the Levant. No Oriente Médio, o grupo é conhecido em árabe como ad-Dawlah al-Islāmiy ah fī ‘l-Irāq wa-shShām, levando ao acrônimo árabe Da’ish ou Daesh. O Iraque e a Síria chegaram à beira da desintegração quando suas diversas comunidades – xiitas, sunitas, curdos, alawitas e cristãos – perceberam que precisavam lutar por sua própria existência. Ao exigir obediência sem perdão à sua variante particular e exclusiva do Islã, o isis matou ou forçou a fuga de todos aqueles que rotulou como “apóstatas” e “politeístas” ou que simplesmente se colocaram contra seu domínio. Seus líderes eram produtos de uma década de guerra no Iraque e na Síria, e o martírio deliberado, por meio de bombas suicidas, foi uma prática central entre suas táticas militares. O mundo nunca havia visto algo semelhante a seu uso de violência pública, para aterrorizar oponentes, desde o Khmer Vermelho no Camboja, 40 anos antes. A data crucial foi 10 de junho de 2014, quando o isis capturou Mosul, capital do norte do Iraque, após quatro dias de luta. Em 23 de setembro, os Estados Unidos ampliaram o uso de força militar na Síria, para prevenir a expansão dos jihadistas. Nos 105 dias que separaram os dois eventos, o isis avançou sobre o Iraque e a Síria, derrotando com facilidade inimigos superiores em número e melhor equipados. Como seria de se esperar, atribuiu esses sucessos à intervenção divina. Em contraste, o governo iraquiano dispunha de um exército com 350 mil soldados, no qual havia investido 41,6 bilhões de dólares, entre 2011 e 2014. Porém, essas forças derreteram sem resistência significativa. Uniformes e equipamentos abandonados foram encontrados dispersos ao longo das estradas que levavam ao Curdistão e a lugares seguros. Em duas semanas, as áreas do oeste do Iraque não controladas pelos curdos passaram às mãos do isis, que, no fim do mês, anunciou a criação de um Califado, que avançava profundamente no Iraque e Síria. Seu líder, Abu Bakr al-Baghdadi, afirmou tratar-se de “um Estado onde árabes e não árabes, homens brancos e negros, orientais e ocidentais são todos irmãos... A Síria não é para os sírios e o Iraque não é para os iraquianos. A Terra é de Alá”. As palavras de Al-Baghdadi revelavam uma intoxicação pela vitória militar que foi crescendo à medida que seus homens enfrentaram e derrotaram oponentes na Síria e no Curdistão iraquiano. Em agosto, a ameaça do isis à capital curda, Erbil, deflagrou ataques aéreos dos Estados Unidos no interior do Iraque, que foram mais tarde estendidos à Síria, em 23 de setembro. O poder aéreo norteamericano pode não ter sido suficiente para eliminar ou mesmo conter o isis, mas forçou os combatentes a abandonarem a guerra semiconvencional, realizada com colunas de veículos (frequentemente, Humvees americanos, capturados do exército do Iraque) cheios de combatentes bem armados. Ao invés disso, o isis recuou para táticas de guerrilhas, já não esperando desencadear um ataque devastador contra o presidente sírio, Bashar al-Assad, os curdos sírios ou outros grupos rebeldes sírios contra os quais combatia na guerra civil desde janeiro de 2014. Ao longo desses 100 dias, a geografia política do Iraque mudou diante dos olhos de seu povo e surgiram sinais concretos dessa transformação em toda parte. Os moradores de Bagdá passaram a cozinhar com gás propano, porque o abastecimento de eletricidade tornou-se totalmente inconstante. Logo, houve um desabastecimento crônico de cilindros de gás, que chegavam de Kirkuk: a estrada para o norte havia sido interrompida por combatentes do isis. Alugar um caminhão por um só dia, para percorrer 350 quilômetros da capital curda, Erbil, a Bagdá, passou a custar 10 mil dólares – contra 500 dó- lares, um mês antes. Existiam sinais abundantes de que os iraquianos temiam um futuro de violência, pois as armas e munições haviam ficado muito mais caras. O valor de uma bala para um rifle de assalto ak-47 rapidamente triplicou – para quatro mil dinares iraquianos, aproximadamente dois dólares. Tornou-se impossível comprar Kalashinikovs de traficantes de armas, embora pistolas ainda fossem encontradas pelo triplo do preço da semana anterior. Subitamente, quase todo mundo tinha armas, inclusive os guardas de trânsito de Bagdá, barrigudos e de camisas brancas, que passaram a usar submetralhadoras. Muitos dos homens armados que começaram a aparecer nas ruas de Bagdá e outras cidades xiitas eram milicianos xiitas – alguns do Asaib Ahl aq-Haq, um racha do grupo populista xiita, seguidor do clérigo nacionalista Muqtada al-Sadr. Essa organização era controlada pelo primeiro-ministro Nouri al-Maliki e os iranianos. O fato de o governo apoiar-se em milícias sectárias para defender a capital foi um sinal do colapso das forças de segurança do Estado e do exército. Ironicamente, até então, um dos poucos feitos de Maliki como primeiro ministro tinha sido enfrentar as milícias xiitas em 2008; mas, agora, ele as encorajava a retornar às ruas. Logo, corpos passaram a ser despejados à noite. Seus documentos de identidade haviam sido levados, mas se assumia que fossem vítimas sunitas dos esquadrões da morte das milícias. O Iraque parecia estar escorregando na beira de um abismo, no qual massacres e contra massacres sectários seriam comparáveis aos da guerra civil entre sunitas e xiitas, em 2006 e 2007. Os 100 dias do isis em 2014 marcaram o fim de um período particular na história do Iraque, que começou com a derrubada de Saddam Hussein pela invasão dos Estados Unidos e Grã-Bretanha, em março de 2003. Desde então, houve uma tentativa, da oposição iraquiana, de derrubar o velho regime e seus aliados externos e criar um novo Iraque, no qual as três comunidades compartilhassem o poder em Bagdá. A experiência fracassou desastrosamente, e parece que será impossível ressuscitar o projeto, porque as linhas de batalha entre curdos, sunitas e xiitas são hoje muito mais rígidas e amargas. O balanço do poder no interior do país está mudando. Também estão se alterando as fronteiras de fato do Estado, com um Curdistão ampliado e cada vez mais independente – tendo os curdos usado oportunisticamente a crise para obter territórios que sempre reivindicaram – e o fim da divisa entre Iraque e Síria. O isis é especialista em estimular o medo. Os vídeos que produz, de seus combatentes executando soldados e pilotos de avião, tiveram um papel importante para aterrorizar e desmoralizar militares xiitas à época da captura de Mosul e Tikrit. Em seguida, houve mais cenas sinistras publicadas na internet, quando o isis derrotou a peshmerga (soldados curdos) do Governo Regional do Curdistão, em agosto. Entretanto, o medo também uniu um amplo arco de oponentes do isis que eram antes hostis uns em relação aos outros. No Iraque, os Estados Unidos e os iranianos ainda se denunciam reciprocamente. Porém, a incursão de milícias xiitas controladas pelo Irã, ao norte de Bagdá, em setembro, para terminar com o cerco à cidade xiita turcomana de Amerli, somente foi possível graças aos ataques aéreos dos norte-americanos às posições do isis. Quando o primeiro ministro desacreditado do Iraque, Nouri al-Maliki, foi substituído por Haider al-Abadi, no mesmo período, a mudança foi apoiada tanto por Washington quanto por Teerã. Maliki considerou brevemente uma resistência à sua substituição, mobilizando unidades militares leais a si no centro de Bagdá, mas foi duramente advertido contra uma tentativa de golpe por oficiais iranianos e norteamericanos. Claro que porta-vozes dos Estados Unidos e do Irã negam a existência de colaboração ativa entre as duas partes, mas estão, no momento, adotando políticas paralelas diante do isis, comunicando suas intenções por meio de intermediários e serviços de inteligência. Não é algo exatamente novo. Os iraquianos sempre disseram, cinicamente, que quando se trata do Iraque “os americanos e iranianos gritam uns com ou outros sobre, mas se dão as mãos por baixo”. Tais teorias conspiratórias podem ser exageradas, mas é verdade que nas relações entre os Estados Unidos e seus aliados europeus, por um lado, e os governos sírio e iraniano, por outro, há uma distância maior do que nunca entre o que Washington diz e o que faz. O assalto do isis contra os curdos e, em especial, as guerrilhas curdas Yazidi, no início de agosto, abriu um novo capítulo no envolvimento dos Estados Unidos no Iraque. A rápida derrota da força, supostamente constituída por combatentes superiores aos do exército regular do Iraque, foi uma demonstração clara da capacidade militar do isis. É possível que o poderio da peshmerga tenha sido superestimado: seus integrantes não haviam combatido contra ninguém, exceto entre si mesmos, por um quarto de século. Um observador externo que a conhecia bastante se referia a ela como a “pêche melba”2, acrescentando que era boa apenas para emboscadas nas montanhas. Sacudidos pelas vitórias do isis, os Estados Unidos intervieram para lançar ataques aéreos e proteger a capital 2. N. do T.: sobremesa de pêssegos, amoras e sorvete.
curda, Erbil. A partir de então, voltaram à guerra no Iraque, embora mais cautelosos e alertas para as perigosas complexidades da atividade militar no país do que em 2003. Por diversas vezes, o presidente BarackObama e seus assessores disseram que precisavam de um parceiro confiável em Bagdá, um governo mais inclusivo e menos sectário do que o de Maliki, para que Washington pudesse empregar sua força. O objetivo era inteligente: dividir a comunidade sunita, separá-la do isis e isolar os extremistas, de modo semelhante ao do “Avanço” no deslocamento de soldados em 2007. Os norte-americanos argumentaram que para pacificar ao menos um setor dos sunitas era preciso que houvesse em Bagdá um governo disposto a dividir poder, dinheiro e empregos. Como é comum no Iraque e na Síria, foi mais fácil dizer do que fazer. Muitos dos sunitas vivendo sob o Califado instituído pelo isis não gostavam de seus novos governantes e sentiam-se amedrontados por eles. No entanto, temiam ainda mais o exército iraquiano, as milícias xiitas e os curdos no Iraque, ou o exército da Síria e as milícias favoráveis a Assad nesse país. O dilema com que se deparam os sunitas no Iraque e na Síria é graficamente descrito num e-mail enviado em setembro, depois que seu bairro foi bombardeado pela aviação iraquiana, por uma amiga sunita em Mosul, que tem todas as razões para não gostar do isis. Vale a pena reproduzilo na íntegra, porque ele revela como será difícil para os sunitas iraquianos enxergarem no governo de Bagdá algo além de um inimigo odiado: O bombardeio foi executado pelo governo. Os ataques visaram bairros totalmente civis. Talvez desejassem atingir duas bases do isis, mas nenhuma das rodadas de bombas acertou os alvos. Um deles é uma casa, ligada a uma igreja, onde vivem homens do isis. Fica próxima ao gerador do bairro e distante 200 a 300 metros de nossa casa. O bombardeio apenas feriu civis e demoliu o gerador. Desde ontem à noite, não temos mais eletricidade. Escrevo de um aparelho na casa de minha irmã, que está vazia. O bombardeio do governo não atingiu nenhum homem do isis. Acabo de ouvir de um parente que nos visitou para saber se estamos bem, depois daquela noite terrível, que, em razão do bombardeio, jovens estão juntando-se ao isis às dezenas ou centenas, porque cresceu o ódio contra o governo, que não se preocupa com a morte de sunitas. As forças do governo foram para Amerli, uma vila xiita circundada por dezenas de vilas sunitas, embora Amerli jamais tenha sido tomada pelo isis. As milícias do governo atacaram as vilas sunitas que a circundam, matando centenas, com auxílio dos ataques norte-americanos. Muito disso é verdadeiro na Síria. O isis é mais popular nas cidades e vilas sunitas capturadas em torno de Aleppo do que muitos outros grupos rebeldes semibandidos. Nesse país, o isis está na ofensiva e impôs as mais sérias derrotas que o exército oficial sofreu em três anos de guerra, como a captura de uma base aérea bem defendida em Tabqa, na região leste. Karen Koenig Abu-Zaid, membro da Comissão de Inquérito da onu na Síria, disse, àquela época, que cada vez mais rebeldes estavam debandando para o isis. “Veem que é melhor, que suas armas são fortes, que vencem batalhas, que trazem dinheiro e que podem treiná-los”.
Os ataques aéreos dos Estados Unidos farão vítimas no isis e tornarão mais difícil que suas colunas de veículos movam-se nas estradas. Entretanto, ser alvo dos aviões norte-americanos também representa vantagens para os rebeldes, porque haverá inevitavelmente vítimas civis. A força militar não substitui um aliado confiável no solo e pode ser contraprodutiva, à medida que aliena a população local. Pode matar numerosos combatentes do isis – mas muitos foram ao Iraque e Síria com a intenção expressa de se tornar mártires. No início de outubro, os resultados da tentativa de fazer o isis recuar por meio de força aérea apenas tornaram-se evidentes: os combatentes do grupo continuavam a avançar contra os sírios em Kobani e contra as forças do governo iraquiano, a oeste de Bagdá. A fraqueza política da coalizão liderada pelos Estados Unidos estava se tornando evidente, porque membros destacados, como a Arábia Saudita, os Emirados Árabes e a Turquia, eram tão hostis ao governo Assad, aos curdos sírios e aos que combatiam o isis quanto este próprio. O vice-presidente norte-americano, Joe Biden, deu a Washington uma visão real sobre seus aliados na região e na Síria, com franqueza não diplomática, ao falar, no Fórum John F. Kennedy Jr, no Instituto de Política da Universidade de Harvard, em 2 de outubro de 2014: A Arábia Saudita, a Turquia e os Emirados Árabes estavam muito determinados a derrubar Assad e, em essência, provocar uma guerra por procuração entre sunitas e xiitas. O que fizeram? Destinaram centenas de milhões de dólares e dezenas de toneladas de armas a qualquer um disposto a lutar contra Assad. Porém, as pessoas que estavam sendo abastecidas eram da Al-Nusra e Al-Qaeda e extremistas da jihad vindos de outras partes do mundo.
·         Ele acrescentou que o isis, sob pressão no Iraque, tinha sido capaz de reconstruir sua força na Síria. E sobre a política norteamericana, de recrutar “moderados” sírios para lutar tanto contra o isis quanto contra Assad, Biden disse que “os Estados Unidos descobriram não haver nenhum centro moderado na Síria, porque os moderados são compostos de comerciantes, não de soldados”. Raras vezes as forças que agiram para criar o isis e a crise atual no Iraque foram descritas com tanta precisão. Atualmente, movimentos do tipo Al-Qaeda governam uma vasta área no norte e oeste do Iraque e no norte e leste da Síria, centenas de vezes maior do que qualquer território controlado, em algum momento, por Osama Bin Laden. Foi depois de sua morte que filiais ou clones da Al-Qaeda tiveram seus maiores êxitos, incluindo a captura de Raqqa, na região leste da Síria, que se tornou, em março de 2013, a primeira capital provincial a cair em mãos dos rebeldes. Em janeiro de 2014, o isis tomou Fal ujah, pouco mais de 60 quilômetros distante de Bagdá, uma cidade cercada e atacada pelos marines norte-americanos, 10 anos antes, num episódio que se tornou famoso. Em poucos meses, eles também capturaram Mosul e Tikrit. As linhas de fronteira podem continuar a mudar, mas será difícil reverter a expansão global de seu poder. Com seu ataque rápido e multi-direcionado de junho de 2014, os militantes do isis superaram a Al-Qaeda como o mais poderoso e eficaz grupo jihadista no mundo. Esses fatos chocaram muitos no Ocidente, inclusive os políticos e especialistas, cujo olhar parecia estar sempre atrasado em relação aos acontecimentos. Uma razão é que se tornou muito difícil para jornalistas e observadores externos visitar as áreas onde o isis operava, com enorme risco de sequestro ou assassinato. “Aqueles que costumavam proteger os jornalistas estrangeiros já não podem proteger nem a si mesmos”, contou-me um correspondente intrépido, explicando por que não retornaria às áreas controladas pelos rebeldes na Síria. A falta de cobertura chegou a ser conveniente para os governos dos Estados Unidos e de outras nações ocidentais. Permitiu-lhes esconder a extensão do fracasso catastrófico da “Guerra ao Terror” lançada após o 11 de Setembro. Esse insucesso também foi mascarado pelas ilusões e autoilusões, por parte dos governos. Em 28 de maio de 2014, ao falar na Academia Militar de West Point  sobre o papel dos norte-americanos no mundo, o presidente Obama afirmou que a maior ameaça não era representada pela Al-Qaeda central, mas por “suas filiais descentralizadas e extremistas, muitos com agendas focadas nos países em que operam”. E acrescentou: “À medida que a guerra civil na Síria extravasa suas fronteiras, amplia-se a capacidade dos grupos extremistas, fortalecidos pelas batalhas, em nos perseguir”. Era verdade, mas a solução de Obama diante da ameaça seria, segundo ele disse, “ampliar o apoio àqueles que, na oposição síria, oferecessem a melhor alternativa diante dos terroristas”. Em junho, ele solicitou ao Congresso 500 milhões de dólares para treinar e equipar membros da oposição síria “apropriadamente examinados”. Havia aí intenção real de enganar, porque, conforme o vice-presidente Joe Biden admitiria cinco meses mais tarde, a oposição militar síria é dominada pelo isis e o grupo Frente al-Nusra, o representante oficial da AlQaeda, além de outros extremistas ligados à jihad. Na verdade, não havia muro de separação algum entre eles e os aliados supostamente moderados de Washington. Um membro da inteligência de um país do Oriente Médio vizinho à Síria revelou-me que os integrantes do isis “dizem que ficavam sempre satisfeitos quando armas sofisticadas eram enviadas para qualquer tipo de grupo anti-Assad, porque eles podem sempre obtê-las por ameaça ou pagamentos em dinheiro”. Não são palavras vazias. Armas fornecidas às forças anti-Assad na Síria, por aliados dos Estados Unidos, como a Arábia Saudita e o Qatar, foram frequentemente capturadas no Iraque. Vivi um pequeno exemplo das consequências desse fluxo de armas, mesmo antes da queda de Mosul, quando, no inverno de 2014, tentei reservar um voo para Bagdá na mesma empresa de aviação europeia que havia usado um ano antes. Disseram-me que ela havia interrompido a rota para a capital do Iraque, por temer que insurgentes tivessem obtido mísseis antiaéreos portáteis originalmente fornecidos às forças anti-Assad na Síria e que os usassem contra aviões comerciais voando para o Aeroporto Internacional de Bagdá. O apoio ocidental para a oposição síria pode ter sido insuficiente para derrubar Assad, mas foi usado com sucesso para desestabilizar o Iraque, como haviam previsto, desde há muito, políticos iraquianos. O fracasso da “Guerra ao Terror” e o ressurgimento da Al-Qaeda são também explicados por um fenômeno evidenciado horas depois do 11 de Setembro. Os primeiros movimentos de Washington deixaram claro que ela seria conduzida sem nenhum confronto com a Arábia Saudita e o Paquistão, dois aliados próximos dos Estados Unidos, apesar do fato de que, sem o envolvimento desses dois países, os ataques ocorridos em Nova York e Washington provavelmente não teriam ocorrido. Dos 19 sequestradores daquele dia, 15 eram sauditas. Bin Laden era originário da elite saudita. Documentos oficiais norte-americanos frisam repetidamente que o financiamento à Al-Qaeda e outros grupos jihadistas era proveniente da Arábia Saudita e das monarquias do Golfo Pérsico. No caso do Paquistão, exército e serviço militar haviam desempenhado um papel central desde o início dos anos 1990, ao impulsionar a tomada do poder pelo Talibã, no Afeganistão, onde abrigaram Bin Laden e a Al-Qaeda. Após um breve hiato, durante e após o 11 de Setembro, o Paquistão reiniciou seu apoio ao Talibã afegão. Ao falar sobre o papel central do Paquistão no apoio ao Talibã, o representante especial dos Estados Unidos para esse país e o Afeganistão, Richard C. Holbrooke, afirmou: “Nós podemos estar lutando contra o inimigo errado, no lugar errado”. A importância da Arábia Saudita na ascensão e retorno da Al-Qaeda é frequentemente mal compreendida e avaliada. O país é influente porque suas vastas reservas de óleo e riqueza o tornam poderoso no Oriente Médio e além. Contudo, não são apenas os recursos financeiros que o transformam em ator tão importante. Outro fator é seu papel na propagação do wahabismo, a versão fundamentalista do Islã, nascida no século xviii, que impõe a lei da sharia, relega as mulheres ao papel de cidadãs de segunda classe e enxerga os xiitas e Sulistas como não muçulmanos, que devem ser tão perseguidos quanto cristãos e judeus. Tais intolerância religiosa e autoritarismo político, com prontidão para o uso da violência, que têm muitas simi-litudes com o fascismo europeu dos anos 1930, estão se tornando cada vez piores. Por exemplo, há poucos anos, o saudita que montou um website em que clérigos podiam ser criticados foi condenado a mil chibatadas e sete anos de prisão. A ideologia da Al-Qaeda e do isis é em grande parte originária do wahabismo. Os críticos dessa nova tendência do Islã originários de outras partes do mundo muçulmano não sobrevivem muito: são forçados a fugir ou assassinados. Ao denunciar os líderes jihadistas em Kabul, em 2003, um editor afegão descreveu-os como “fascistas sagrados”, que usavam o Islã como “um instrumento para tomar o poder”. Como era de se prever, foi acusado de insulto e teve de deixar o país. Um fato notável no mundo islâmico, nas últimas dé- cadas, é a forma como o wahabismo está sobrepujando o sunismo islâmico tradicional. Em um país após o outro, a Arábia Saudita injeta dinheiro para treinar pregadores e construir mesquitas. Um resultado é a difusão da tendência sectária entre sunitas e xiitas. Os últimos veem-se alvo de ataques sem precedentes, da Tunísia à Indonésia. Esse sectarismo não está confinado a vilarejos vizinhos a Aleppo ou ao Punjab: envenena as relações entre as duas vertentes em qualquer agrupamento islâmico. Um amigo muçulmano em Londres relatou-me: “Olhe as agendas de qualquer sunita ou xiita na Grã-Bretanha e você encontrará pouquíssimos nomes de pessoas fora de sua própria comunidade”. Mesmo antes de Mosul, Obama começou a perceber que grupos do tipo Al-Qaeda eram muito mais fortes do que haviam sido antes, mas sua receita para lidar com eles repete e exacerba erros anteriores. “Precisamos de parceiros para lutar ao nosso lado contra os terroristas”, disse aos que o escutavam em West Point. No entanto, quem seriam eles? Arábia Saudita e Qatar não foram mencionados, embora continuem ao lado dos Estados Unidos na Síria. Ao invés desses dois países, Obama apontou “Jordânia e Líbano, Turquia e Iraque” como aliados a receberem ajuda para “enfrentar os terroristas que atuam além das fronteiras da Síria”. Há algo absur-do nisso, já que os jihadistas estrangeiros na Síria e no Iraque, os que Obama admite e entende como a principal ameaça, só podem chegar a esses países porque cruzam a fronteira de 800 quilômetros entre a Turquia e a Síria sem serem incomodados pelas autoridades turcas. A Arábia Saudita, Turquia e Jordânia podem agora estar as-sustadas com o Frankenstein que ajudaram a criar, mas há pouco que possam fazer para detê-lo. Um objetivo oculto da insistência de Washington em que Arábia Saudita, Emirados Árabes, Qatar e Bahrein participassem ou apoiassem os ataques aéreos na Síria, em setembro, foi forçá- los a romper seus laços anteriores com os jihadistas. Houve sempre algo fantástico na aliança dos Estados Unidos e outras potências ocidentais com as monarquias absolutistas, teocráticas e sunitas, da Arábia Saudita e do Golfo Pérsico, a pretexto de levar a democracia à Síria, Iraque e Líbia. Em 2011, os norte americanos eram, no Oriente Médio, um poder mais dé- bil do que haviam sido em 2003, porque seus exércitos fracassaram no Iraque e Afeganistão. Nas rebeliões de 2011, os destinatários das injeções maciças de dinheiro dos reis e emires do Golfo Pérsico foram os setores jihadistas e sunitas sectários, a ala militarizada dos movimentos. Os oponentes seculares e não sectários dos estados policiais há muito estabelecidos na região foram rapidamente marginalizados, silenciados ou mortos. A mídia internacional foi muito lenta ao notar a que pon-to a natureza desses movimentos havia mudado, embora os islamistas fossem muito claros sobre quais eram suas prioridades sectárias. Na Líbia, um dos primeiros atos dos rebeldes triunfantes foi exigir a legalização da poligamia, que havia sido banida pelo regime de Muamar Gaddafi. O isis é filho da guerra. Seus membros buscam redesenhar o mundo a partir de si mesmos, por atos de violência. Sua combinação tóxica, porém eficaz, de cren- ças religiosas extremas com capacidade militar é produto da guerra no Iraque desde a invasão norte-americana em 2003 e da guerra na Síria, desde 2011. Exatamente no momento em que a violência declinava no Iraque, foi re-avivada na Síria pelos árabes sunitas. É consenso entre os governos e a mídia, no Ocidente, que a guerra civil no Iraque foi reacendida pelas políticas sectárias do primeiro-ministro iraquiano Nouri al-Malik. Na verdade, foi a guerra na Síria que desestabilizou Bagdá, quando grupos jihadistas como o isis, à época chamado de Al-Qaeda no Iraque, encontraram um novo campo de batalha, onde puderam lutar e florescer. Foram os Estados Unidos, a Europa e seus aliados regionais na Turquia, Arábia Saudita, Qatar, Kuwait e Emirados Árabes que criaram as condições para a ascensão do isis. Eles sustentaram um levante sunita na Síria, que se espalhou para o Iraque. Mantiveram a guerra na Síria, embora fosse óbvio, desde 2012, que Assad não cairia. Ele nunca controlou menos de treze ou catorze capitais provinciais da Síria, e foi apoiado pela Rússia, Irã e o Hezbol ah. Ainda assim, as únicas chances de paz que lhe foram propostas nas conversações de Genebra ii, em janeiro de 2014, implicavam que deixasse o poder. Ele não aceitaria, e se criaram condições ideais para que o isis prosperasse. Agora, os Estados Unidos e seus aliados tentam colocar as comunidades sunitas, no Iraque e Síria, contra o grupo, mas será difícil, num momento em que esses pa- íses estão convulsionados pela guerra. O ressurgimento de facções do tipo Al-Qaeda já não é uma ameaça confinada à Síria, Iraque e vizinhos. O que está ocorrendo nessas nações, combinado com a dominância crescente de crenças wahabitas intolerantes entre as comunidades sunitas, significa que 1,6 bilhão de muçulmanos – quase um quarto da população mundial – serão crescentemente afetados. Parece improvável que os não muçulmanos, inclusive os ocidentais, deixem de ser atingidos por esse conflito. Após ter transformado a cena política no Iraque e Síria, o jihadismo ressurgente já produz efeitos remotos na geopolítica global, com consequências sobre todos nós. Em 6 de junho de 2014, os combatentes do isis lançaram um ataque a Mosul, segunda maior cidade do Iraque, que caiu quatro dias depois. Foi uma vitória espantosa, alcançada por uma força de 1.300 homens contra outra que nominalmente teria 60 mil, incluindo o exército iraquiano e as polícias locais. Como em muitos casos no Iraque, contudo, a disparidade numérica não era o que parecia ser. A corrupção das forças de segurança era tal que apenas um em cada três de seus homens estava de fato presente em Mosul. Os demais pagavam até metade de seus salários a seus superiores para ficar em permanente licença. Mosul já era muito insegura havia bastante tempo. A Al-Qaeda no Iraque (como o isis foi anteriormente conhecido) sempre manteve forte presença nessa cidade de dois milhões de habitantes, a maioria esmagadoramente sunita. Durante algum tempo, o grupo obteve dinheiro vendendo regularmente proteção a empresários. Em 2006, um comerciante com quem eu tinha amizade em Bagdá contou que estava fechando sua loja de celulares em Mosul por conta dos pagamentos que tinha de fazer à Al-Qaeda. Relatos exagerados do sucesso da ofensiva norte- americana, no ano seguinte, garantindo que a Al-Qaeda havia sido esmagada, ignoravam a presença dos combatentes em Mosul. Algumas semanas após a queda da cidade, encontrei um empresário turco em Bagdá. Ele relatou que havia mantido um grande contrato de construção em Mosul, nos anos anteriores. O emir local, líder do isis, exigiu 500 mil dólares mensais como taxa de proteção de sua empresa. “Reclamei diversas vezes em Bagdá, mas não fizeram nada a respeito, exceto dizer que eu poderia acrescentar o valor cobrado por eles ao preço do contrato”. O isis tinha outra vantagem, que lhe dá até o momento grande superioridade em relação a seus principais inimigos. Os vales do Eufrates e do Tigre e a estepe vazia e deserta onde opera, nas regiões norte e oeste do Iraque e leste da Síria, parecem-se muito, não importando de que lado do vale você esteja. Porém, as condições militares e políticas são totalmente distintas nos dois países, o que permite aos comandantes do Califado mover-se em todas as direções nesse território, tirar proveito de oportunidades e apanhar os inimigos de surpresa. Por isso, o isis tomou Mosul e Tikrit em junho, mas não atacou Bagdá. Em julho, impôs uma série de derrotas ao exérci-to sírio. Em agosto, invadiu o Curdistão iraquiano. E, em setembro, estava invadindo o enclave do Curdistão sírio em Kobani, na fronteira com a Turquia. O grupo fica mais forte à medida que opera em dois diferentes países. • A queda de Mosul, em junho de 2014, foi um ponto de virada tão grande na história do Iraque, da Síria e do Oriente Médio que vale a pena descrevê-la detalha-damente. Na campanha para o cerco da cidade, o isis começou com o que pareceu ser um ataque diversionista contra outros alvos no norte do Iraque. Foi provavelmente uma tática para manter, tanto quanto possível, o exército e o governo iraquiano confusos a respeito do objetivo real. Primeiramente, uma coluna de veículos cheios de atiradores portando metralhadoras pesadas penetrou em Samarra, na província de Salahuddin, em 5 de junho, e se apoderou de boa parte da cidade. Isso só poderia desencadear uma resposta governamental pesada, já que Samarra, ainda que majoritariamente sunita, é o local de Al-Askari, uma das sedes xiitas mais sagradas. Um ataque a bomba, em 2006, provocou resposta xiita furiosa, com massacre de sunitas em toda Bagdá. Previsivelmente, o exército iraquiano enviou, por helicópteros, reforços de sua Divisão Dourada, para expulsar os combatentes inimigos. Houve outras ações diversionistas. Numa delas, atiradores tomaram o campus universitário de Ramadi, a capital da província de Anbar, e aprisionaram por tempo breve centenas de es-tudantes. Em outra, em Baquba, a nordeste de Bagdá, um carro-bomba atingiu o escritório de contraterrorismo. Neste caso, como em tantos outros, o grupo de assalto não atacou casas e se retirou rapidamente. O assalto a Mosul foi muito mais sério, embora a princípio não parecesse. Começou com quatro ataques suicidas a bomba, amparados por fogo de morteiros. O isis foi apoiado por outros grupos paramilitares sunitas, dentre eles o Naqshbandi, baathista, o Ansar al-Islam e o Exército Moujahedin, embora não estivesse claro, até então, se facções operavam fora de sua autoridade. Combatentes jihadistas destruíram postos de controle governamentais que paralisavam o tráfego da cidade há muito tempo, mas se provaram inúteis como apara- tos de segurança. Esses ataques não diferiram das ações diversionistas mais ao sul anteriormente, mas, em 7 de junho, os Estados Unidos e o Ministério do Interior curdo detectaram, à distância, um comboio do Isis movimentando-se da Síria em direção a Mosul. A luta do dia seguinte foi crítica, porque esquadrões de combatentes do isis apoderaram-se de edifícios importantes, dentre eles o quartel da Polícia Federal. Em Bagdá, o governo foi totalmente incapaz de compreender a gravidade da situação, dizendo aos preocupados diplomatas norte-americanos que, em uma semana, reforços chegariam a Mosul. Também desprezou uma proposta de Massoud Barzani, o líder curdo, para enviar sua peshmerga a Mosul e combater o isis, considerando-a uma ação oportunista de grilagem. A derrota tornou-se irreversível em 9 de julho, quando três generais iraquianos destacados – Abboud Qanbar, vice-comandante; Ali Ghaidan, comandante das for- ças terrestres; e Mahdi Gharawi, cabeça das Operações Níneve – subiram num helicóptero e fugiram para o Curdistão. Isso provocou o colapso moral e a desintegra- ção das forças do exército. Em 11 de junho, ficou clara a incapacidade do governo Al-Maliki de saber o que estava ocorrendo ou tomar decisões, quando aprovou o deslocamento de uma peshmerga à cidade, um dia após ter fracassado. A história de um soldado do exército iraquiano revela como era ser aprisionado nessa derrota vergonhosa. No início de junho, Abbas Saddam, do distrito xiita de Bagdá, que servia na 11ª divisão do exército iraquiano, foi transferido de Ramadi para Mosul. A luta começou pouco depois de ele chegar, mas, na manhã de 10 de junho, seu comandante ordenou aos subordinados que deixassem de atirar, entregassem suas armas aos insurgentes, livrassemse dos uniformes e saíssem da cidade. Antes que pudessem obedecer, suas barracas foram invadidas por uma massa de civis.
“Apedrejavam-nos”, lembra-se Abbas, relatando que gritavam: “Não queremos vocês em nossa cidade! Vocês são filhos de Maliki. Vocês são filhos da mutta [a tradição xiita de casamento temporário, desprezada pelos sunitas]. Vocês são safavidas [xiitas]! Vocês são o exército do Irã”. O ataque da multidão revelou que a queda de Mosul resultou de uma incursão militar, mas também de um levante popular. O exército iraquiano era odiado como uma força de ocupação exercida por soldados xiitas, vistos em Mosul como servidores de um regime fantoche do Irã, dirigido por Maliki no Iraque. O soldado Abbas relata que havia combatentes do isis – chamado de Daesh no Iraque, um nome derivado de seu acrônimo em ára-be – misturados à multidão. Eles diziam aos soldados: “Entreguem suas armas e vão. Se não, vamos matá-los”. Abbas viu mulheres e crianças com armas militares. Moradores ofereceram aos soldados túnicas árabes, para que pudessem fugir. Ele voltou para sua família em Bagdá, mas não comunicou ao exército, por medo de ser levado a julgamento por deserção, como ocorreu com um amigo. Embora os sunitas de Mosul se alegrassem por ver o exército iraquiano pelas costas e temessem seu retorno, estavam cientes de que a cidade havia se convertido num lugar perigoso. Entretanto, nada podiam fazer a respeito. Em 11 de junho, uma amiga, sunita e profissional liberal, enviou-me um e-mail no qual revelava a ansiedade com-partilhada por muitos: Mosul caiu completamente nas mãos do isis. A situação aqui é muito calma. Parecem tratar a população com cortesia e protegem todas as instituições governamentais contra saqueadores. O governo de Mosul e todo o exército do Iraque, a polícia e as forças de segurança deixaram suas posições e fugiram da batalha. Tentamos fugir para o Curdistão, mas não permitiram. Vão nos colocar, como refugiados, em tendas sob o calor do sol. Por isso, a maioria das pessoas voltou para casa e decidiu que não pode se ver como refugiada, mas não sabemos o que pode acontecer nas próximas horas. Deus proteja todo mundo. Reze por nós. Não foi apenas em Mosul que as forças de seguran- ça do Iraque desintegraram-se e fugiram, liderados por seus comandantes. A cidade de Baiji, sede da maior re-finaria do país, foi abandonada sem luta, assim como Tikrit. Outra vez, um helicóptero surgiu para resgatar os comandantes do exército e os oficiais mais graduados. Os soldados de Tikrit que se renderam foram divididos em dois grupos – sunitas e xiitas. Muitos, no segundo grupo, foram metralhados diante de uma trincheira. Sua execução foi gravada em vídeo para intimidar as unidades restantes das forças de segurança. Os norte-americanos disseram que cinco das 18 divisões do exército desintegraram-se durante a queda da região norte do Iraque. Ao mesmo tempo, até mesmo o isis pareceu chocado pela extensão de seu próprio sucesso. “Tanto os inimigos quanto os apoiadores estão boquiabertos”, afirmou o porta-voz do isis, Abu Mohammed al-Adnani. A celebração, contudo, foi acompanhada de um aviso: os combatentes do isis não deveriam impressionar-se com todo o material militar norte-americano que haviam capturado. “Não sejam presas de suas vaidades e egos”, disse a eles, “mas marchem rumo a Bagdá antes que os xiitas possam recompor-se”.
Cheguei a Bagdá em 16 de junho, quando a cidade ainda estava em estado de choque após o colapso do exército. As pessoas não podiam acreditar que o período iniciado em 2005, quando os xiitas tentaram dominar o Iraque como os sunitas haviam feito antes, sob Saddam Hussein e a monarquia, tivesse subitamente terminado. O desastre, de seu ponto de vista, era tão inesperado e inexplicável que qualquer outra calamidade parecia possível. Em teoria, a capital era segura: tinha uma maioria xiita e era defendida pelos remanescentes do exército regular, além de dezenas de milhares de milicianos xiitas. O mesmo, todavia, poderia ter sido dito de Mosul e Tikrit. A primeira reação do governo à derrota foi descren- ça e pânico. Maliki atribuiu a queda de Mosul a uma conspiração profunda, embora nunca identificasse os conspiradores. Parecia ao mesmo tempo perplexo e desafiador, mas não demonstrava sentir responsabilidade pessoal pela derrota, apesar de ter nomeado pessoalmente todos os comandantes de divisão do exército. Nos primeiros dias após a queda de Mosul, havia um senso de histeria semissuprimida nas ruas vazias. As pessoas permaneciam em casa, amedrontadas, para seguir as últimas notícias na tv. Muitas haviam estocado comida e combustível horas depois de ouvir a respeito do colapso do exército. Lojas de doces e padarias produziam pastéis especiais para quebrar o jejum ao final do dia, durante o Ramadan, mas poucos os compravam. Casamentos eram cancelados. A cidade foi varrida por rumores segundo os quais o isis planejava um ataque súbito ao centro de Bagdá e a tomada da Zona Verde, apesar de sua imensa fortificação. Um jornal da capital relatou que não menos de sete ministros e 42 parlamentares haviam se refugiado na Jordânia, junto com suas famílias.
O maior medo era de que os combatentes do isis, que estavam a apenas uma hora de carro, em Tikrit e Fal ujah, planejassem seu ataque para coincidir com um levante dos enclaves sunitas da capital. Estes, embora animados pelas notícias da queda das províncias sunitas para os insurgentes, temiam que os xiitas se sentissem tentados a promover um massacre preventivo contra a sua minoria na cidade, vista como uma potencial quinta coluna. Redutos sunitas, como Adhamiy a, na margem leste do Tigre, pareciam desertos. Por exemplo: tentei contratar um motorista recomendado por um amigo. Ele me disse que precisava do dinheiro, mas era sunita, e o risco de ser parado num posto de controle era grande demais. “Estou tão amedrontado”, disse, “que nunca saio de casa depois das seis da tarde”. Era fácil entender a que ele se referia. Homens de aparência sinistra em roupas civis, que poderiam ser dos serviços de inteligência governamentais ou de milícias xiitas, haviam surgido subitamente nos pontos de controle, levando suspeitos. Esses novos oficiais, inteiramente uniformizados, estavam claramente em posição de dar ordens aos policiais e soldados. Nos escritórios, trabalhadores sunitas pediam para voltar para casa mais cedo, para não serem presos. Outros simplesmente deixavam de ir ao trabalho. Ser detido num posto de controle em Bagdá implica uma carga extra de medo, porque todo mundo, particularmente os sunitas, recorda o que isso significava durante a guerra civil sectária de 2006 e 2007: muitos dos pontos de controle eram dominados por esquadrões da morte, e possuir a carteira de identidade errada significava execução inevitável. Relatos da imprensa davam conta de que os matadores eram “homens vestidos como policiais”, mas todo mundo em Bagdá sabe que a condição de policial e soldado é frequentemente intercambiável. Não havia nada de paranoico ou irracional na sensação sempre presente de ameaça. O conselheiro de seguran- ça nacional do Iraque de então, Safa Hussein, disse-me: “Muitas pessoas pensam que o isis irá sincronizar ataques de dentro e de fora de Bagdá”. Ele acreditava que tal assalto fosse possível, embora acreditasse que levaria o isis e os rebeldes sunitas que se juntassem a ele à derrota. Os sunitas são minoria, mas não seria muito difícil para uma força de ataque proveniente dos bastiões sunitas na província de Anbar articular-se com os distritos da cidade, como Amariy a.
Em 8 de agosto, a aviação norte-americana começou a bombardear o isis no Iraque. Em 23 de setembro, os generais acrescentaram o isis e o Frente al-Nusra, representante da Al-Qaeda na Síria, à sua lista de alvos. Os combatentes, que haviam removido seus homens e equipamentos dos edifícios e outros locais que poderiam ser facilmente atingidos, passaram a táticas de guerrilha, que haviam adotado com sucesso no passado. Nos Estados Unidos e Grã-Bretanha (que começou operações aéreas no Iraque em 27 de setembro), houve fanfarra sobre “atingir e destruir” o isis, mas não apareceu evidência de um plano de longo prazo, além de conter e ameaçar os jihadistas por meios militares. Como era muito frequente, durante a intervenção militar norte-americana entre 2003 e 2011, a mídia colocou foco excessivo sobre as ações dos governos ocidentais como motor principal dos acontecimentos. Isso foi acompanhado por uma compreensão frágil e equivocada sobre os novos acontecimentos no Iraque e na Síria e a verdadeira força que impulsionava a crise nos dois países. Do mesmo modo, houve muita celebração nas capitais ocidentais quando o Iraque finalmente livrou-se do primeiro-ministro Nouri alMaliki, substituído por Haider al-Abadi. O novo governo foi visto como mais inclusivo com árabes sunitas e curdos do que no tempo de Maliki, mas ainda era dominado pelo partido Dawa – que tinha mais membros no gabinete do que antes – e por outras legendas religiosas xiitas. Abadi prometeu aos sunitas que não haveria mais bombardeios em áreas civis sunitas, mas, algumas semanas depois, Fal ujah foi bombardeada por seis dias, com 28 civis mortos e 118 feridos, segundo o hospital local. O grau da mudança política foi superestimado e não se deu suficiente atenção ao fato de Abadi não ter sido capaz, mesmo com os combatentes do isis a poucos quilômetros de Bagdá, de obter do Parlamento aprovação para suas escolhas nos cruciais ministérios da Defesa e do Interior. Reidar Visser, um especialista norueguês em assuntos do Iraque, classificou esse fracasso como “muito mais significativo do que a grande quantidade de encontros internacionais que estão agora ocorrendo, em nome da vitória sobre o isis no Iraque”. Um sintoma do estado real das coisas, àquela época, foi o desfecho de um cerco de uma semana ao redor da base do exército do Iraque em Saqlawiy ah, vizinha a Fal ujah, ao fim do qual o isis conquistou a posição, matando ou capturando a maior parte da guarnição que a defendia. Um oficial iraquiano que escapou teria dito que “dos estimados mil soldados que havia em Saqlawiy ah, apenas 200 conseguiram fugir”. O isis anunciou que tinha capturado ou destruído cinco tanques e 41 Humvees, ao liberar a área “da imundície dos safavidas”. Soldados iraquianos sobreviventes queixaram-se de que, durante o cerco, não haviam recebido qualquer reforço de munição ou suprimentos, comida ou água, embora estivessem a apenas 60 quilô- metros de Bagdá. Em outras palavras, três meses e meio depois da queda de Mosul e seis semanas depois do início das incursões aéreas norte-americanas, o exército iraquiano permanecia incapaz de suportar um ataque do isis ou executar uma operação militar elementar. Assim como em Mosul e Tikrit, o sucesso aparentemente napoleônico do isis era parcialmente explicado pela incapacidade do exército iraquiano. Na Síria, os ataques aéreos igualmente levaram o isis a recuar para operações em estilo de guerrilha, ao lado de duas ofensivas que lançou na região norte contra enclaves curdos. Algumas unidades rebeldes em torno de Damasco, capital da Síria, que haviam antes dado a si próprias nomes islâmicos para atrair financiamento da Arábia Saudita e dos Estados do Golfo, oportunisticamente os trocaram para títulos de sentido secular, num esforço para atrair apoio norte-americano. O Frente al- -Nusra, que foi atacado pelos norte-americanos, para sua própria surpresa, condenou as investidas aéreas e passou a propor uma ação comum com outros jihadistas contra “as Cruzadas”. Assim como no Iraque, não seria fácil manipular os sunitas e os rebeldes contra o isis, agora que os Estados Unidos haviam passado a ser vistos como um aliado de facto de Assad, apesar das alegações contrárias. • Em junho, muitas pessoas em Bagdá haviam temido que o isis lançasse um ataque à capital, mas ele nunca veio. À medida que as atenções do mundo voltaram-se para um avião malásio derrubado sobre a Ucrânia, supostamente por rebeldes municiados pelos russos, e para os bombardeios israelenses em Gaza, que mataram dois mil palestinos, o isis consolidou sua posição na província iraquiana de Anbar, que, esmagadoramente sunita, espraia-se pelo oeste do Iraque. Na Síria, ele derrotou ou incorporou a suas fileiras outros grupos rebeldes e capturou diferentes bases, infringindo perdas graves e obtendo muito equipamento pesado. Foram as piores derrotas sofridas pelo governo de Damasco desde o iní- cio do levante. O recém-declarado Califado expandia-se dia a dia. Ele agora abrangia uma área maior do que a Grã-Bretanha, habitada por cerca de seis milhões de pessoas – uma população maior do que a da Dinamarca, Finlândia ou Irlanda. Em poucas semanas de luta na Síria, o isis havia se estabelecido como a força dominante na oposição, expulsando a filial oficial da Al-Qaeda, Frente alNusra, da província de Deir Ezzor, rica em petróleo, e executando seu comandante local, que tentara fugir. No norte da Síria, cerca de cinco mil combatentes do isis usavam tanques e artilharia capturados do exército iraquiano, em Mosul, para sitiar meio milhão de curdos em seu enclave em Kobani, na fronteira com a Turquia. No centro da Síria, perto de Palmira, o isis combateu o exército oficial ao tomar o campo de gás de al-Shaer, um dos maiores do país, num ataque de surpresa, que deixou cerca de 300 soldados e civis mortos. Repetidos contra-ataques do governo finalmente permitiram a retomada do campo, mas o isis ainda controlava a maior parte da produção de petróleo e gás da Síria. A aviação norte-americana deveria concentrar-se em explodir as instalações petrolíferas controladas pelos isis, quando começou seus bombardeios. Contudo, um movimento que clama estar realizando a “vontade de Deus” e cultua o martírio não irá, por falta de dinheiro, deixar suas atividades ou sequer sofrer decepção moral grave. O nascimento do novo Estado foi a mudança mais radical na geografia política do Oriente Médio desde o Acordo Sy kes-Picot, implementado após fim da i Guerra Mundial. Entretanto, no início, surpreendentemente, essa transformação explosiva provocou pouco alarme internacional, ou mesmo entre aqueles, no Iraque e na Síria, ainda não submetidos à lei do isis. Políticos e diplomatas tenderam a tratar o isis como se fosse um grupo beduíno de ataque, que aparece dramaticamente do deserto, obtém vitórias devastadoras e depois se retira para seus bastiões, deixando o status quo quase intacto. A rapidez extrema e o caráter imprevisível de sua ascen-são levaram os governantes do Ocidente – e os locais – a esperarem que a queda do isis e a implosão do Califado pudessem ser igualmente súbitas e suaves. Como em qualquer grande desastre, o ânimo das pessoas alternou- -se entre o pânico e um pensamento positivo particular, segundo o qual a calamidade não era tão ruim como se havia imaginado. Em Bagdá, com uma população de sete milhões de habitantes, majoritariamente xiita, as pessoas sabiam o que esperar se as forças do isis, mortalmente antixiitas, capturassem a cidade, mas se encorajavam com o fato de nada ter acontecido ainda. “Estávamos apavorados pelo desastre militar no início, mas nós nos acostumamos a crises nos últimos 35 anos”, disse uma mulher. Mesmo com o isis na porta, os políticos iraquianos continuaram brincando, enquanto mexiam-se lentamente para substi-tuir o desacreditado primeiro-ministro Nouri al-Maliki. “É realmente surreal”, disse-me um ex-ministro iraquia-no. “Quando você conversa com qualquer líder político em Bagdá, ele fala como se não tivesse acabado de perder metade do país”. Voluntários foram mandados ao front após uma fatwa3 do grande aiatolá Ali al-Sistani, o 3. Nota do Editor: pronunciamento no Islã feito por especialista em lei religiosa. mais influente clérigo xiita do Iraque. Porém, em meados de julho, esses milicianos haviam retornado a suas casas, reclamando de que estavam semifamintos, e foram forçados a usar suas próprias armas e comprar sua munição. O único contra-ataque em larga escala lançado pelo exército regular e pela recémsurgida milícia xiita foi uma desastrosa incursão em Tikrit, em 15 de julho – emboscada e derrotada com perdas pesadas. Não há nenhum sinal de que a natureza disfuncional do exército iraquiano tenha mudado. “Eles usavam apenas um helicóptero no apoio às tropas em Tikrit”, afirmou o ex-ministro, questionando: “Por isso, pergunto-me o que terá acontecido aos 140 helicópteros que o Estado iraquiano adquiriu recentemente”. A resposta provável é que o dinheiro para as 139 aeronaves restantes tenha simplesmente sido roubado. Diante desses desastres, a maioria dos xiitas confortou-se com duas ideias que, se verdadeiras, significariam que a situação presente era menos perigosa do que parecia. Argumentavam que os sunitas iraquianos haviam se levantado em revolta e que os lutadores do isis eram apenas as tropas de choque de vanguarda, num movimento provocado pelas políticas e ações antissunitas de Maliki. Uma vez que ele foi substituído – algo que parecia inevitá- vel, consideradas as pressões do Irã, dos Estados Unidos e da hierarquia clerical xiita –, Bagdá proporia aos sunitas um novo acordo de partilha do poder, assegurando autonomia regional semelhante à oferecida aos curdos. Então, as tribos sunitas, os ex-comandantes militares e os baathistas (do partido secular Baath, que foi liderado por Saddam Houssein), que haviam permitido ao isis liderar a revolta sunita, iriam voltar-se contra o aliado feroz. Apesar dos inúmeros sinais contrários, os xiitas em todos os níveis acreditavam nesse mito reconfortante segundo o qual o isis era fraco e poderia ser facilmen-te descartado pelos sunitas moderados, assim que estes alcançassem seus objetivos. Um xiita afirmou para mim: “Tenho dúvidas se o isis realmente existe”. Infelizmente, o isis não apenas existe, mas é uma organização eficiente e implacável, sem nenhuma intenção de esperar para que seus aliados sunitas o traiam. Em Mosul, ele exigiu que todos os combatentes da oposição jurassem obediência ao Califado ou entregassem suas armas. No final de junho e início de julho, os militantes detiveram ex-oficiais da época de Saddam Hussein, inclusive dois generais. Grupos que haviam exibido fotos de Saddam receberam ordens de retirá-las ou sofreriam as consequências. “Não parece provável”, disse Aymenn al-Tamimi, um especialista em jihadistas, “que o restante da oposição militar sunita seja capaz de se voltar contra o isis com sucesso. Se o fizerem, terão de agir tão rapidamente quanto possível, antes que o grupo torne-se forte demais”. Ele frisou que a ala supostamente mais moderada da oposição sunita nada havia feito para impedir que os remanescentes da antiga comunidade cristã de Mosul fossem forçados a fugir, depois que o isis lhes disse que deveriam converter-se ao Islã e pagar tributos especiais – ou seriam mortos. Membros de outras seitas e grupos étnicos, denunciados como xiitas ou politeístas, eram perseguidos, aprisionados ou assassinados. Parecia estar passando o momento em que uma oposição não ligada ao isis pudesse representar um desafio para o grupo. Os xiitas iraquianos ofereceram uma segunda explicação para a forma como seu exército foi desintegrado: ele teria sido apunhalado pelas costas pelos curdos. Buscando transferir sua culpa, Maliki afirmou que Erbil a capital curda, “é um quartel-general para o isis, baathistas, Al-Qaeda e terroristas”. Muitos xiitas acreditam na explicação, que os faz sentir que suas forças de segurança (350 mil soldados e 650 mil policiais) fracassaram porque foram traídas, não porque não puderam lutar. Um iraquiano contou-me que participou de um iftar4 “com 100 profissionais xiitas, principalmente médicos e engenheiros, e todos eles assumiram como certa a teoria da punhalada nas costas, para explicar o que deu errado”. O confronto com os curdos foi importante porque tornou possível criar uma frente comum contra o isis. Ele mostrou como, mesmo quando desafiados por um inimigo comum, os líderes xiitas e curdos são incapazes de cooperar. O líder curdo, Massoud Barzani, teria apro-veitado a luta do exército iraquiano para obter territórios – inclusive a cidade de Kirkuk, que tem sido disputada por curdos e árabes desde 2003. Barzani tem agora uma fronteira comum de mil quilômetros com o Califado e deveria ter sido um aliado óbvio para Bagdá, onde os curdos são parte do governo. Ao tentar usar os curdos como bodes expiatórios, Maliki assegurou que os xiitas não teriam aliados no confronto com o isis, se este retomasse o ataque em dire- ção a Bagdá. Os sunitas provavelmente não se satisfariam com a autonomia regional para as suas províncias e uma parcela maior das receitas do petróleo e dos empregos. Seu levante converteu-se numa completa contrarrevolução, que busca tomar o poder em todo o Iraque. Nos dias escaldantes do verão de julho, Bagdá tinha uma atmosfera de guerra farsesca, como Londres e Paris no final de 1939 ou início de 1940, por razões similares. 4. N. do T.; Refeição de quebra de jejum, no Ramadã, mês sagrado. As pessoas haviam temido um ataque iminente à capital após a queda de Mosul, mas ele não havia ocorrido ainda, e os otimistas acreditavam que não aconteceria jamais. A vida era mais desconfortável do que costumava ser, com apenas quatro horas de eletricidade em alguns dias, mas ao menos a guerra não havia chegado ao cora- ção da cidade. Fui jantar no Alwiy ah Club, em Bagdá, e tive dificuldades para reservar uma mesa. Os líderes xiitas do Iraque não haviam compreendido que sua dominação sobre o Estado iraquiano, alcançada pela derrubada de Saddam Hussein pelos norte-americanos, havia terminado. Acabou devido à sua própria incompetência e corrupção, e porque o levante sunita na Síria, em 2011, desestabilizou o balanço de forças entre as seitas no Iraque. Na Síria, a vitória sunita liderada pelo isis no Iraque ameaçou romper o impasse militar. Antes disso, o presidente sírio, Bashar al-Assad, havia encurralado lentamente a oposição enfraquecida. Em Damasco e em sua periferia, nas montanhas de Qalamoun ao longo da fronteira com o Líbano e em Homs, as forças do governo haviam avançado lentamente e estavam próximas de cercar o grande enclave rebelde de Aleppo. Porém, as tropas de combate de Assad são notavelmente reduzidas. Precisam poupar-se de perdas pesadas e têm força para lutar em apenas uma frente de cada vez. A tática do governo é devastar um distrito controlado pelos rebeldes com fogo de artilharia e bombas disparadas de helicópteros, forçar a maior parte da população a fugir, isolar o que se converteu, então, num mar de ruínas e, ao fim, forçar os rebeldes à rendição. Contudo, a chegada de grande número de combatentes do isis, bem armados e reforçados por vitórias anteriores, impunha um novo e perigoso desafio para o regime sírio. Uma teoria conspiratória muito difundida pelo resto da oposição síria e por diplomatas ocidentais, segundo a qual o isis e Assad estariam coligados, demonstrou-se falsa quando o grupo rebelde obteve vitórias no campo de batalha. Do mesmo modo, em Bagdá, a teoria cons- piratória segundo a qual o isis e os curdos estariam coligados explodiu dramaticamente quando a facção lançou seu ataque surpresa contra as regiões curdas, derrotou a peshmerga em Sinjar e forçou os Yazidis a fugirem, ameaçando a capital Erbil e provocando a reentrada dos Estados Unidos na guerra do Iraque. À medida que o isis tornou-se a maior força na oposição síria, colocou o Ocidente e seus aliados regionais – Arábia Saudita, Qatar, Emirados Árabes e Turquia – diante de um dilema: sua política oficial era livrar-se de Assad, mas o isis era agora a segunda maior força militar na Síria. Se o regime caísse, o grupo estaria em boa po-sição para preencher o vácuo. Como os líderes xiitas em Bagdá, os Estados Unidos e seus aliados responderam à emergência do isis mergulhando em fantasia. Fingiram que estavam impulsionando uma “terceira força” de rebeldes moderados sírios para combater tanto Assad quanto o isis, ao passo que, reservadamente, os diplomatas ocidentais admitiam que esse grupo na realidade não existia, exceto em bolsões sitiados. Aymenn alTamimi, especialista na expansão do jihadismo, confirmou que essa oposição apoiada pelo Ocidente “está ficando cada vez mais frágil”. Ele acredita que abastecê-la com mais armas não fará muita diferença. Quando seus ataques aéreos começaram, os norteamericanos passaram a informar o governo sírio sobre quando e onde eles ocorreriam, mas não fizeram o mes- mo com os rebeldes “moderados” aos quais publicamente amparavam. Presumivelmente, calcularam que qualquer coisa que dissessem ao Exército Sírio Livre, a tênue articulação das unidades rebeldes “moderadas”, chegaria em minutos aos ouvidos do isis e Frente alNusra. • O medo do isis cresceu em escala internacional após a queda de Mosul, mas apenas tornou-se profundo e penetrante quando o grupo cercou as forças curdas em Sinjar, no início de agosto, e pareceu posicionado para tomar a capital curda, Erbil. Houve um súbito reordenamento de alianças e prioridades nacionais. Como argumentado anteriormente, os patrocinadores do isis e de outros movimentos jihadistas no Iraque e na Síria haviam sido a Arábia Saudita, as monarquias do Golfo Pérsico e a Turquia. Isso não significa que os jihadistas não tivessem fortes raízes locais, mas sua ascensão foi crucialmente apoiada por poderes sunitas externos. A ajuda saudita e do Qatar foi principalmente financeira, em geral por meio de doações privadas. Richard Dearlove, ex-chefe da agência de inteligência britânica mi6, julga terem sido centrais na tomada das províncias sunitas no norte do Iraque: “Essas coisas não acontecem espontaneamente”. Num discurso em Londres, em julho de 2014, ele disse que a política saudita diante dos jihadistas tem dois motivos contraditórios: medo de que operem na própria Arábia Saudita e desejo de usá-los contra os poderes xiitas no exterior. Ele disse que os sauditas são “profundamente atraídos por qualquer militância que possa efetivamente desafiar o xiitismo”. Seria improvável que a comunidade sunita no Iraque como um todo tivesse alinhado-se ao isis sem o apoio que a Arábia Saudita deu, direta ou indiretamente, para muitos movimentos sunitas. O mesmo ocorre na Síria, onde o príncipe Bandar Bin Sultan, ex-embaixador saudita em Washington e chefe da inteligência saudita entre 2012 e fevereiro de 2014, fez tudo o que pôde para apoiar a oposição jihadista, até sua demissão. Temerosos do que ajudaram a criar, os sauditas passaram a atuar em outra direção, aprisionando voluntários jihadistas, ao invés de fazerem vistas grossas, quando eles dirigiam-se à Síria e Iraque. Mas pode ser tarde demais. Os jihadistas sauditas têm pouca consideração pela Casa de Saud. Em 23 de julho de 2014, o isis lançou um ataque contra uma das últimas fortalezas do exército sírio na província de Raqqa, ao norte. Começou com o ataque suicida de um carrobomba; o veículo era dirigido por um saudita de nome Khatab al-Najdi, que decorou as janelas do carro com fotos de três mulheres presas em cárceres sauditas, uma das quais era Hila al-Kasir, sua sobrinha. O papel da Turquia tem sido diferente, mas não menos significativo do que o da Arábia Saudita na ajuda ao isis e a outros grupos jihadistas. Sua ação mais importante é manter aberta a fronteira de 900 quilômetros com a Síria. Isso deu ao isis, Al-Nusra e outros grupos de oposição uma base de retaguarda segura, de onde chegam homens e armas. Os pontos de passagem na fronteira foram os lugares mais disputados durante a “guerra civil dentro da guerra civil” dos rebeldes. Amaior parte dos jihadistas estrangeiros atravessou a Turquia em seu caminho para a Síria e o Iraque. É difícil obter números precisos, mas o Ministério do Interior do Marrocos revelou recentemente que 1.122 jihadistas marroquinos penetraram na Síria, incluindo 900 que o fizeram em 2013, 200 dos quais foram mortos. A segurança iraquiana suspeita que a inteligência militar turca possa ter se envolvido pesada-mente no apoio ao isis quando o grupo reconstituiu-se, em 2011. Relatos da fronteira turca dizem que o isis já não é bem-vindo, mas com as armas obtidas do exército iraquiano e a captura de campos de petróleo e gás sírio, a ajuda externa não é mais tão necessária. Os curdos turcos e sírios acusaram ainda a Turquia de ser, secretamente, corpo e alma do isis, mas é provavelmente um exagero. Seria mais correto dizer que esse país soube ver o papel que o isis poderia desempenhar no enfraquecimento de Assad e dos curdos sírios. Quando o bombardeio da Síria começou, em setembro, os Estados Unidos jactaram-se de ter constituído uma coalizão de 40 nações. Esta, porém, além de frouxa, era pesada e seus membros tinham agendas muito distintas, o que paralisava uma ação comum. Para os Estados Unidos, a Grã-Bretanha e as outras potências ocidentais, a ascensão do isis e o Califado são o desastre final. Quaisquer que fossem seus planos, na invasão do Iraque em 2003 e nos esforços para derrubar Assad na Síria desde 2011, eles não incluíam a criação de um Estado jihadista abrangendo o norte do Iraque e da Síria, dirigido por um movimento 100 vezes maior e muito melhor organizado do que a Al-Qaeda de Osama Bin Laden. A guerra contra o terror, em nome da qual as liberdades civis foram golpeadas e centenas de bilhões de dólares gastos, fracassou miseravelmente. A crença de que o isis está interessado apenas em lutas “de muçulmanos contra muçulmanos” é apenas outro tipo de ilusão. O grupo mostrou que combaterá qualquer um que não adira à sua variante violenta, puritana e fanática do Islã. O isis difere da Al-Qaeda pelo fato de ser uma organiza- ção militar bem dirigida, muito cuidadosa em escolher seus alvos e o momento preciso de atacá-los. Muitos em Bagdá esperavam que os excessos do isis – por exemplo, explodir mesquitas que julgam ser santuários, como a de Younis (Jonah), em Mosul – fossem afastar os sunitas. Em longo prazo, à medida que o gru-po imponha suas normas sociais e religiosas primitivas, isso pode ocorrer. Vale relatar um incidente, numa área dominada pelo isis, que ilustra o ânimo popular. A testemunha, uma mulher, relata: Exatamente nesta tarde, fui, com minha velha mãe, fazer compras e buscar remédios em meu carro, com roupas finas, que mostravam apenas meus olhos. O que posso fazer? Na semana passada, uma mulher estava diante de um quiosque e descobriu o rosto para beber uma garrafa de água. Um deles [isis] aproximou-se dela e a golpeou na cabeça com um bastão. Não percebeu que o marido estava ao lado. Ele espancou o agressor, que saiu correndo atirando aleatoriamente para o céu, enquanto as pessoas, em simpatia, tentavam alcançá-lo para agredi-lo. Esta é apenas uma história da brutalidade em que estamos vivendo. Numa terra de compulsivos tabagistas, as fogueiras de cigarros organizadas pelo isis não são populares, mas se opor ao grupo é muito perigoso. Ademais, apesar de sua brutalidade, ele garantiu uma vitória para uma comunidade sunita perseguida e esmagada. Mesmo os sunitas de Mosul, que não gostam do grupo, temem a volta de um governo iraquiano vingativo e dominado pelos xiitas. Até agora, a resposta militar de Bagdá à sua derrota foi bombardear Mosul e Tikrit aleatoriamente, o que deixou clara, para os moradores, a indiferença diante de seu bem-estar ou sobrevivência. O medo não vai se alterar, mesmo com a substituição de Maliki por um primeiro-ministro mais conciliatório. Um sunita em Mosul, escrevendo logo depois que um míssil disparado por forças governamentais explodiu na cidade, disse-me: “As forças de Maliki já demoliram a Universidade de Tikrit. Ela foi reduzida a destroços e pedras, como toda a cida-de. Se Maliki puser as mãos sobre nós, em Mosul, ele irá matar a população ou transformá-la numa horda de refugiados. Reze por nós”. Tais visões são comuns e tornam menos provável que a população sunita levante-se contra o isis ou o Califado. Um novo e terrível Estado surgiu – e ele não desaparecerá facilmente.
Um vídeo postado na primavera iraquiana de 2014, pelo Estado Islâmico do Iraque, antes denominado Al-Qaeda no Iraque, mostra jihadistas estrangeiros, provavelmen-te em algum lugar da Síria, queimando seus passaportes para demonstrar um compromisso permanente com a jihad. O filme, feito profissionalmente, é revelador para quem imagina que a guerra em curso na Síria pode ser contida. Ele mostra, ao contrário, como o conflito na grande faixa de território entre o rio Tigre e a costa do Mediterrâneo já começou a convulsionar toda a região. A capa dos passaportes sugere que a maior parte é saudita (verde-grama) ou jordaniano (azul escuro), embora muitas outras nacionalidades estejam representadas no grupo. À medida que rasga seu passaporte e o atira às chamas, cada homem faz uma declaração de fé, uma promessa de lutar contra o governante de seu país de origem. Um canadense faz um curto discurso em inglês, antes de mudar para árabe, dizendo: “[Esta] é uma mensagem aos poderes do Canadá e da América. Estamos chegando, e vamos destruí-los”. Um saudita, um egípcio e um tchetcheno fazem ameaças similares, sublinhando a intenção declarada dos jihadistas de atuar em qualquer parte do mundo. O que torna as ameaças particularmente alarmantes é o fato de o território controlado pelo isis ser imensamente maior do que o alcançado antes por qualquer grupo ligado à AlQaeda.
Se olhar o mapa do Oriente Médio, você verá que organizações do tipo Al-Qaeda tornaram-se uma força poderosa e letal num território que se estende da província de Diy ala, a nordeste de Bagdá, à província de Lataka, na costa síria do Mediterrâneo. Todo o vale do Eufrates, no oeste do Iraque e leste da Síria, até a fronteira com a Turquia, está hoje sob domínio do isis ou da Frente al-Nusra, representante oficial do que funcionários nor-te-americanos chamam de “coração” da Al-Qaeda no Paquistão. Grupos do tipo Al-Qaeda no oeste e norte do Iraque e no norte e leste da Síria agora controlam um território do tamanho da Grã-Bretanha, e a área em que organizam operações é muito mais extensa. • A fronteira entre a Síria e o Iraque deixou, em grande parte, de existir. Vale a pena examinar separadamente a situação nos dois países. No Iraque, quase todas as áreas sunitas, aproximadamente um quarto do seu território, estão inteira ou parcialmente sob controle do isis. Antes de capturar Mosul e Tikrit, o grupo mobilizava seis mil combatentes, mas o número multiplicou-se muitas vezes depois de a facção ganhar prestígio e capacidade de apelo entre jovens sunitas, logo após suas vitórias espetaculares. Seu próprio nome – Estado Islâmico do Iraque e do Levante - expressa sua intenção: construir um Estado islâmico no Iraque e no “al-Sham”, ou Grande Síria. Não planeja partilhar o poder com ninguém. Dirigido desde 2010 por Abu Bakr al-Baghdadi, também conhecido como Abu Dua, provou-se mais violento e sectário do que o “coração” da Al-Qaeda, dirigido por Ayman al- -Zawahiri, baseado no Paquistão.
Abu Bakr al-Baghdadi começou a surgir das sombras no verão de 2010, quando se tornou líder da Al-Qaeda no Iraque, depois que seus antecessores foram mortos num ataque conduzido por tropas desse país e dos Estados Unidos. A Al-Qaeda no Iraque andava mal das pernas, já que a rebelião sunita, em que havia antes desempenhando um papel de liderança, estava sucumbindo. Foi reavivada pela revolta dos sunitas na Síria, em 2011, e, nos três anos seguintes, por uma série de campanhas cuidado-samente planejadas, tanto nesse país quanto no Iraque. Não se sabe até que ponto al-Baghdadi foi diretamente responsável pela estratégia militar e táticas da Al-Qaeda no Iraque e, posteriormente, do isis. Ex-funcionários graduados do exército e inteligência iraquianos, à época de Saddam Hussein, desempenharam um papel central, mas estão sob a liderança geral de al-Baghdadi. Detalhes da carreira de al-Baghdadi variam segundo a fonte – ou o próprio isis, ou a inteligência norte-americana ou iraquiana. Porém, o quadro geral é bastante claro. Ele nasceu em Samarra, uma cidade majoritariamente sunita ao norte de Bagdá, em 1971. Teve boa educação, com graduação em Estudos Islâmicos (incluindo Poesia, História e Genealogia), na Universidade de Bagdá. Uma foto de al-Baghdadi, feita quando era prisioneiro dos norte-americanos em Bocca Camp, sul do Iraque, mostra um iraquiano normal na faixa dos 25 anos, com cabelos pretos e olhos castanhos. Acredita-se que seu nome real seja Awwad Ibrahim Ali al-Badri al-Samarrai. Ele pode ter sido um militante islâmico sob Saddam, como pregador na província de Diyala, ao norte de Bagdá, onde, depois da invasão norte-americana de 2003, constituiu seu próprio grupo armado. Movimentos insurgentes têm motivos fortes para fornecer informação desencontrada sobre sua estrutura de comando e liderança, mas parece que al-Baghdadi passou cinco anos, entre 2005 e 2009, prisioneiro dos norte-americanos. Depois que passou a dirigir a Al-Qaeda no Iraque, o grupo tornou-se cada vez melhor organizado, emitindo inclusive relatórios anuais sobre suas operações em cada província iraquiana. Por saber do destino de seus predecessores na liderança da Al-Qaeda no Iraque, al- -Baghdadi existiu em extremo sigilo. Poucas pessoas sabiam quem ele era. Os prisioneiros da Al-Qaeda no Iraque dizem que nunca o encontraram ou que, quando o fizeram, ele usava uma máscara. Tirando proveito da guerra civil síria, al-Baghdadi enviou combatentes e fundos ao país, para organizar a Frente al-Nusra, filiado à Al-Qaeda. Ele separou-se do grupo em 2013, mas manteve controle de uma larga faixa de território no norte da Síria e Iraque. Contra uma oposição fragmentada e disfuncional, al-Baghdadi moveu-se rapidamente para se estabelecer como um líder efetivo, ainda que esquivo. A rápida ascensão do isis, depois que ele assumiu a liderança, foi em grande medida auxiliada pelo levante sunita em 2011, na Síria. O movimento encorajou os seis milhões de sunitas no Iraque a agir contra a marginalização política e econômica que sofriam desde a queda de Saddam Hussein. O isis lançou uma campanha bem planejada em 2013, que incluiu um assalto exitoso à prisão de Abu Ghraib, no verão iraquiano daquele ano, para libertar seus líderes e outros combatentes experientes. A sofisticação militar do isis é muito maior do que a que tinha (mesmo em seu auge, em 2006 e 2007) a organização tipo Al-Qaeda da qual o grupo emergiu. O isis tem a enorme vantagem de ser capaz de operar em ambos os lados da fronteira sírio-iraquiana. Embora na Síria esteja engajado numa guerra civil interjihadis-ta contra a Frente al-Nusra, o Ahrar al-Sham e outras facções, ele ainda controla Raqqa e boa parte do leste, exceto os enclaves mantidos pelos curdos, próximos à fronteira turca. Jessica D. Lewis, do Instituto de Estudos da Guerra, descreveu-o, num ensaio sobre o movimento jihadista no final de 2013, como “uma organização extremamente vigorosa, resiliente e capaz, que pode operar de Basra à costa síria”. Embora o poder crescente do isis fosse óbvio para quem acompanhasse os fatos, o significado do que estava ocorrendo foi percebido por poucos governos estrangeiros, mesmo após o vasto choque que se seguiu à queda de Mosul. Ao expandir sua influência no Iraque, o isis foi capaz de capitalizar dois fatores: a revolta sunita na vizinha Síria e a marginalização dos sunitas por um governo liderado pelos xiitas, em Bagdá. Os protestos sunitas, que começaram em dezembro de 2012, foram inicialmente pacíficos, mas a falta de concessões por parte do primeiro-ministro Nouri al- -Maliki, somada a um massacre no acampamento de paz de Hawijah, em abril de 2013, que foi devastado pelo exército iraquiano e terminou com a morte de mais de 50 manifestantes, converteu um protesto pacífico numa resistência armada. Nas eleições parlamentares de abril de 2014, Maliki apresentou a si mesmo, em primeiro lugar, como o líder dos xiitas que iria enfrentar uma contrarrevolução sunita com base na província de Anbar. Depois da queda de Mosul, o primeiro-ministro foi culpado por se recusar a fazer reformas que teriam neutralizado o apelo do isis, mas ele não foi o único líder xiita a acreditar que os sunitas nunca aceita-riam a perda de sua antiga posição de comando.
A hostilidade geral dos sunitas a Maliki, como promotor do sectarismo, havia permitido ao isis aliar-se com sete ou oito grupos militantes sunitas, com quem antes travava combate. Maliki não deve ser culpado por tudo o que ocorreu de ruim no Iraque, mas teve um papel decisivo ao empurrar a comunidade sunita às armas do isis – algo que talvez, algum dia, lamente. Paradoxalmente, embora tenha se saído bem nas eleições parlamentares de abril de 2014, ao amedrontar os eleitores xiitas com o fantasma de uma contrarrevolução sunita, ele agiu como se isso fosse apenas um truque eleitoral e pareceu não perceber quão próximos os sunitas estavam de uma insurreição real, na qual o isis serviu como tropa de choque. Em sua queda, ele ignorou alguns sinais de alerta claríssimos. No início de 2014, o isis havia tomado Fal ujah, apenas 65 quilômetros a oeste de Bagdá, assim como vasto território em Anbar, a enorme província que compreende muito da região oeste do país. Em março, atiradores do grupo desfilaram pelas ruas de Fal ujah para exibir sua recente captura de veículos norte-americanos blinda-dos Humvees, antes pertencentes ao exército iraquiano. Foi uma humilhação final para os norte-americanos que a bandeira negra da Al-Qaeda tremulasse de novo numa cidade que havia sido capturada pelos marines em 2004, após uma dura vitória, acompanhada por muita retórica autocongratulatória. O isis controla agora não apenas a cidade, mas a represa de Fal ujah, o que lhe permite regular o fluxo do Eufrates, podendo inundar ou secar as cidades ao sul. Incapaz de desalojá-los pela força, o governo de Bagdá desviou a água do rio para um velho canal fora do controle dos combatentes, o que evitou uma crise imediata. No entanto, a luta em Anbar mostrou como o balanço de poderes mudou em favor do isis. O exército iraquiano, com cinco divisões estacionadas na província, sofreu uma derrota devastadora, perdendo cinco mil homens, mortos ou feridos, e mais 12 mil que desertaram. Mais ao norte, em junho de 2014, o isis, somando forças com grupos sunitas locais, assumiu o controle de Mosul (a segunda maior cidade do Iraque, com uma população de mais de um milhão de habitantes), expulsando rapidamente o exército da cidade. Contudo, como frisou um iraquiano, em muitos aspectos “Mosul já não estava sob autoridade governamental havia muito tempo”. Antes da tomada, o isis já cobrava impostos de todo mundo, de vendedores de verduras no mercado a empresas de telefones celulares e de construção. Segundo uma estimativa, sua renda apenas com essa cobrança era de oito milhões de dólares ao mês. O mesmo tipo de “tributação” ocorria em Tikrit, ao norte de Bagdá, onde um amigo relatou que as pessoas não comiam em nenhum restaurante que não estivesse em dia com os pagamentos ao isis, por medo de que o local fosse atingido por uma bomba durante o jantar. • Olhando agora para a Síria: hoje, a oposição armada ao governo Assad é dominada por jihadistas que desejam estabelecer um Estado islâmico. Aceitam combatentes estrangeiros e têm uma história sinistra de massacres contra minorias sírias, especialmente alawitas e cristãos. Com exceção das áreas controladas pelos curdos, todo o leste do país, inclusive muitos dos campos de petróleo, estão agora sob controle dos jihadistas. O governo conserva alguns poucos postos, nessa vasta área, mas não tem forças para recapturá-la.
Diferentes grupos jihadistas competem uns com os outros na região e, desde o início de 2014, engajaram-se num combate mortífero. Em 2012, o isis fundou a Frente al-Nusra, captando uma oportunidade em meio à esca-lada rápida da guerra civil na Síria e temendo que sua própria luta fosse marginalizada. Enviou ao novo grupo dinheiro, armas e combatentes experimentados. Um ano atrás, tentou reafirmar sua autoridade sobre o grupo incipiente, que havia se tornado independente demais, aos olhos dos líderes do isis, buscando enquadrá-lo numa organização maior, abrangendo Síria e Iraque. A Frente al-Nusra resistiu a esse esforço e os dois grupos envolveram-se numa complicada guerra civil interjiha-dista. A Frente Islâmica, poderosa aliança de brigadas de oposição estabelecida há pouco, apoiada pela Turquia e o Qatar, também está combatendo o isis, embora com-partilhe seus objetivos de estrita imposição da sharia. No tocante a temas sociais e religiosos, o isis e a Frente al-Nusra não apresentam divergências marcantes, ainda que a segunda tenha reputação de ser menos rígida. No entanto, foram lutadores da Frente al-Nusra em Deir Ezzor, na região do Eufrates, no leste da Síria, que invadiram uma festa de casamento numa casa particular, espancando e prendendo mulheres que ouviam música alta e não usavam vestes islâmicas. Apesar desse conflito, os grupos não jihadistas são hoje periféricos na oposição síria. Em particular o Exército Livre Sírio (fsa), cujo braço político já foi designado pelo ocidente como futuro ocupante do poder no país, está marginalizado. O isis controla a província de Aleppo, a leste, enquanto boa parte da recente luta nessa cida-de foi liderada pela Frente al-Nusra e o Ahrar al-Sham, outro movimento tipo Al-Qaeda. Um recente ataque ao território controlado pelo governo sírio em Latakia, na costa do Mediterrâneo, teve como pontas de lança jihadistas marroquinos e tchetchenos. Ao mesmo tempo, combatentes da Frente al-Nusra controlam alguns dos subúrbios de Damasco e um conjunto de vilas e cidades que se estende até a fronteira turca. A luta entre o isis e outros jihadistas é na verdade uma disputa por espólios, mais um reflexo de quão fortes eles são do que um sinal de diferenças em relação a seus objetivos de longo prazo. • Esse aumento nítido na força e alcance das organizações jihadistas na Síria e Iraque não havia sido, em geral, destacado até há pouco por políticos e mídia no Ocidente. A razão principal para isso é que os governos e suas forças de segurança definem de modo muito estrito a ameaça jihadista – para eles, restrita às forças diretamente controladas pelo centro ou “coração” da Al-Qaeda. Isso lhes permite apresentar, em relação a seu suposto sucesso na chamada “Guerra ao Terror”, um retrato muito mais otimista do que a situação real permitiria. Na verdade, a ideia de que os únicos jihadistas com os quais se preocupar são aqueles que têm as bênçãos oficiais da Al-Qaeda é ingênua e autoenganadora. Ignora, por exemplo, o fato de que o isis foi criticado pelo líder da Al-Qaeda, Ayman al-Zawahiri, por violência e sectarismo excessivos. Depois de conversar recentemente com um leque de jihadistas sírios não diretamente ligados à Al-Qaeda, no sul da Turquia, uma fonte disse-me que “todos eles, sem exceção, expressaram júbilo pelos ataques de 11 de Setembro e desejo de que algo semelhante possa acontecer na Europa”.
Grupos jihadistas ideologicamente próximos à AlQaeda foram rotulados como “moderados” e suas ações são vistas como coerentes com os objetivos políticos dos Estados Unidos. Na Síria, os norte-americanos apoia-ram um plano da Arábia Saudita para abrir uma “frente sul”, baseada na Jordânia, que seria hostil ao governo de Assad e, ao mesmo tempo, aos rebeldes tipo Al-Qaeda no norte e leste. Esperava-se que a poderosa, mas supostamente moderada Brigada Yarmouk, que receberia mísseis antiaéreos da Arábia Saudita, fosse o elemento de liderança nessa nova formação. Porém, diversos vídeos mostram que a Brigada Yarmouk lutou frequentemente em colaboração com a Frente al-Nusra, a filiada oficial da Al-Qaeda. Como era provável que, em meio à batalha, esses dois grupos trocassem munições, Washington estava efetivamente permitindo que armamento avançado fosse entregue a seu inimigo mais mortal. Autoridades do Iraque confirmam ter capturado, do isis, armas sofisticadas, originalmente fornecidas por potências externas a forças consideradas anti-Al-Qaeda na Síria. O nome Al-Qaeda foi sempre empregado de modo flexível para identificar um inimigo. Em 2003 e 2004, no Iraque, enquanto crescia a oposição armada à ocupação pelos Estados Unidos e Grã-Bretanha, a maior parte dos oficiais norteamericanos atribuía os ataques à Al-Qaeda, embora muitos fossem executados por grupos nacionalistas e baathistas. Esse tipo de propaganda ajudou a persuadir quase 60% dos eleitores norte-americanos, antes da invasão, de que havia uma conexão entre Saddam Hussein e os responsáveis pelo 11 de Setembro, ainda que não exis-tisse evidência alguma em favor da hipótese. No próprio Iraque e em todo o mundo muçulmano, essas acusações beneficiaram a Al-Qaeda, ao exagerar seu papel na resistência contra a ocupação norte-americana e britânica. Táticas de relações públicas diametralmente opostas foram empregadas pelos governos ocidentais em 2011, na Líbia, quando foi descartada qualquer similaridade ente a Al-Qaeda e os rebeldes apoiados pela otan, que lutavam para derrubar o líder líbio, Muammar Gaddafi. Apenas os jihadistas que tinham um linkoperacional direto com o “coração” da Al-Qaeda sob Bin Laden foram considerados perigosos. A falsidade da alegação segundo a qual os jihadistas contrários a Gaddafi na Líbia eram menos ameaçadores do que aqueles em contato direto com a Al-Qaeda teve de ser exposta, ainda que de maneira trágica, quando o embaixador norte-americano Chris Stevens foi morto por combatentes jihadistas em Benghazi, em setembro de 2012. Eram os mesmos “guerreiros” elogiados pelos governos e mídia ocidentais por seu papel no levante contra Gaddafi. A Al-Qaeda é, há muito tempo, uma ideia, muito mais do que uma organização. Por cinco anos, a partir de 1996, ela teve de fato quadros, recursos e acampamentos no Afeganistão, mas tudo isso foi eliminado após a derrubada do Talibã, em 2001. Em seguida, o nome Al-Qaeda converteu-se principalmente num chamado à ação, num conjunto de crenças e costumes islâmicos centrado na criação de um Estado islâmico, na imposição da sharia, na submissão das mulheres e numa guerra sagrada contra outros muçulmanos, em especial os xiitas, considerados hereges que merecem a morte. No centro dessa doutrina de guerra está uma ênfase no autossacrifício e no martírio, como símbolos de fé e compromisso religiosos. Isso resultou na mobilização de homens-bombas, destreinados, mas fanatizados, com efeitos devastadores. Sempre foi do interesse dos Estados Unidos e de outros governos apresentar a AlQaeda como uma organização com uma estrutura de comando e controle como um mini-pentágono ou como a máfia norte-americana. É uma imagem reconfortante para o público, já que grupos organizados, ainda que demoníacos, podem ser rastreados e eliminados por meio do encarceramento ou morte. Muito mais alarmante é a realidade de um movimento cujos aderentes são autorrecrutados e podem despontar em qualquer parte. O grupo de militantes de Osama Bin Laden, que ele não chamava de Al-Qaeda até o 11 de Setembro, era apenas um, dentre muitas facções jihadistas, há 12 anos. Hoje, porém, suas ideias e métodos são predominantes entre os jihadistas, devido ao prestígio e publicidade que obtiveram por meio da destruição das Torres Gêmeas, da guerra no Iraque e da demonização por Washington, como a fonte de todo o mal anti-americano. Atualmente, as diferenças entre as crenças dos jihadistas estão se es-treitando, independentemente de serem ou não ligados ao núcleo da Al-Qaeda. Não é surpreendente que os governos prefiram uma visão de fantasia da Al-Qaeda. Ela lhes permite cantar vitórias quando são capazes de eliminar os membros e aliados mais famosos da rede terrorista. Frequentemente, tratam-se essas pessoas eliminadas como se tivessem patentes quase militares, como “comandantes de opera- ções”, para sublinhar o significado de tirá-las de combate. O cúmulo desse aspecto altamente publicizado, mas quase irrelevante, da “Guerra ao Terror” foi o assassinato de Bin Laden, em Abbottabad, Paquistão, em 2011. O fato permitiu ao presidente Obama aparecer diante do público norte-americano como o homem que presidiu a caça ao líder da Al-Qaeda. Em termos práticos, no entanto, sua morte teve pequeno impacto sobre os grupos jihadistas do tipo Al-Qaeda, cuja maior expansão ocorreu depois. • As decisões centrais que permitiram à Al-Qaeda sobreviver e, em seguida, expandir-se, foram tomadas nas horas que se sucederam ao 11 de Setembro. Quase todos os elementos significativos no plano de explodir aviões nas Torres Gêmeas e em outras edificações icônicas para os Estados Unidos conduziam à Arábia Saudita. Bin Laden era membro da elite saudita e seu pai fora um aliado próximo da família real saudita. Citando um relatório da cia de 2002, o documento oficial sobre o 11 de Setembro conta que a Al-Qaeda dependia, para seu financiamento, de “diversos doadores e captadores de recursos, em especial nos países do Golfo e particularmente na Arábia Saudita”. Os investigadores encarregados do relatório tiveram sua ação repetidamente limitada, quando buscaram informações na Arábia Saudita. Entretanto, o presidente George W. Bush aparentemente nunca sequer considerou apontar os sauditas como responsáveis pelo ocorrido. A saída de líderes sauditas, inclusive parentes de Bin Laden, dos Estados Unidos foi facilitada pelo governo norte-americano nos dias que se sucederam ao 11 de Setembro. Ainda mais significativo: em nome da “segurança nacional”, 28 páginas do relatório da comissão encarregada de investigar os acontecimentos, dedicadas às relações entre os terroristas e a Arábia Saudita, foram suprimidas e nunca publicadas, apesar das promessas do presidente Obama em sentido contrário. Em 2009, oito anos após o 11 de Setembro, um despacho da secretária de Estado norte-americana, Hil ary Clinton, revelado pelo Wikileaks, queixava-se de que doadores sauditas constituíam a fonte mais significativa no financiamento de grupos de terror sunitas em todo o mundo. Contudo, a despeito dessa admissão privada, os Estados Unidos e a Europa Ocidental permaneceram indiferentes aos pregadores sauditas, cuja mensagem, difundida a milhões por satélite, tv, YouTube e Twitter, pedia o assassinato de xiitas como heréticos. Tais apelos foram feitos quando as bombas da Al-Qaeda estavam dizimando pessoas nos bairros xiitas no Iraque. Um sub-título em outro despacho do Departamento de Estado, no mesmo ano, pergunta: “Arábia Saudita – antixiitismo como Política Externa?”. Agora, cinco anos mais tarde, grupos apoiados pelos sauditas acumularam um histórico de sectarismo extremo contra muçulmanos não sunitas. O Paquistão ou, melhor dizendo, a inteligência militar paquistanesa, na forma do Inter-Services Intelligence, foi o outro pai da Al-Qaeda, do Talibã e dos movimentos jihadistas em geral. Quando o Talibã estava se desinte-grando sob o peso dos bombardeios norte-americanos em 2001, suas forças no norte do Afeganistão foram emboscadas por tropas contrárias a ele. Antes de se renderem, centenas de membros do Inter-Services Intelligence, ins-trutores e conselheiros militares foram apressadamente evacuados por ar. Apesar das evidências mais claras sobre o patrocínio do Inter-Services Intelligence ao Talibã e aos jihadistas em geral, Washington recusou-se a enfrentar o Paquistão. Assim, abriu caminho para o ressurgimento do Talibã após 2003 – o que nem os Estados Unidos nem a otan foram capazes de reverter. A “Guerra ao Terror” fracassou porque não visou o movimento jihadista como um todo e, acima de tudo, não focou na Arábia Saudita e Paquistão, os dois países que impulsionaram o jihadismo como um credo e um movimento. Os Estados Unidos não o fizeram porque esses países eram importantes aliados, que não deveriam ser ofendidos. A Arábia Saudita era um mercado enorme para as armas norte-americanas e cultivou, até o ponto de comprar, membros influentes do establishment políti-co norte-americano. O Paquistão é uma potência nuclear com população de 180 milhões de habitantes e laços militares estreitos com o Pentágono. O ressurgimento espetacular da Al-Qaeda e seus semelhantes ocorreu apesar da imensa expansão do or- çamento dos serviços de inteligência norte-americanos e britânicos, após o 11 de Setembro. Desde então, os Estados Unidos, seguidos de perto pela Grã-Bretanha, travaram guerras no Afeganistão e no Iraque e adotaram procedimentos normalmente associados a Estados policiais – como encarceramento sem julgamento, detenção, tortura e espionagem doméstica. Os governos conduzem a “Guerra ao Terror” alegando que os direitos dos cidadãos precisam ser sacrificados para assegurar a segurança de todos. Apesar dessas medidas de segurança controversas, os grupos contra os quais elas se dirigem não foram derrotados – ao contrário, fortaleceram-se. No tempo do 11 de Setembro, a Al-Qaeda era uma organização pequena e em geral ineficaz. Em 2014, havia muitos grupos poderosos do tipo Al-Qaeda. Em outras palavras, a “Guerra ao Terror”, que moldou muito da paisagem política desde 2001, claramente fracassou, mas, até a queda de Mosul, ninguém havia prestado muita atenção.







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