“Organizações criminosas da ex-URSS estão entre as mais
globalizadas do mundo. Juntas, elas movimentam fortunas com extorsão, fraudes,
prostituição e tráfico internacional”
Tudo
aconteceu muito rápido no início de 2008. Semion Mogilevich, o mais notório
mafioso da Rússia, deixava o World Trade Center de Moscou num BMW, seguido pelo
Jipe de seus guarda-costas, quando foi cercado por 50 policiais. Naquela fria
noite de 23 de janeiro de 2008, Mogilevich identificou-se como “o respeitável
homem de negócios” Sergei Shneider – um dos 17 pseudônimos usados por esse
ucraniano de 61 anos, graduado em economia e procurado pelo FBI por fraude e
lavagem de dinheiro. Não houve troca de tiros. O mafioso acendeu um cigarro,
comentou sobre o tempo com os policiais e entrou calmamente na viatura.
A prisão de Mogilevich causou estrondo em jornais do mundo todo,
que anunciaram um duro golpe contra a temida máfia russa. Mas os especialistas
explicam que não é bem assim: homens como Mogilevich pouco têm de “poderosos
chefões”, do mesmo jeito que o crime organizado russo não possui a estrutura monolítica,
a hierarquia e nem os códigos de honra da máfia siciliana. Afinal, o que é a
máfia russa? Quando ela começou e como funciona hoje?
“Máfia é uma forma de crime organizado. Ela existe quando grupos
criminosos são capazes de assumir papéis quase governamentais, como a
organização de mercados e a resolução de disputas internas”, diz o especialista
James Finckenauer, professor da Escola de Justiça Criminal da Rutgers
University, nos EUA. “Portanto, dentro do crime organizado russo, só alguns
grupos poderiam ser chamados de máfias.” Além disso, não estamos falando de uma
única máfia da Rússia, mas de redes criminosas que abrangem todas as repúblicas
da extinta URSS.
Nos países bálticos (Estônia, Letônia e Lituânia), máfias locais
controlam a fabricação de bebidas alcoólicas. Na ex-república soviética da
Ucrânia, elas estão envolvidas com a exploração de recursos naturais. No
Cáucaso, grupos mafiosos seqüestram e usam o dinheiro do resgate para financiar
movimentos separatistas. E na Ásia Central, eles movimentam fortunas com a
venda de ópio proveniente do Afeganistão (leia mais no mapa das págs. 56 e 57).
É por isso que o FBI prefere chamar esse fenômeno de “crime organizado
euro-asiático”. Para simplificar, adotaremos a forma “crime organizado russo” –
ou ROC, na sigla em inglês. Uma sigla que virou sinônimo de extorsão, fraude,
prostituição, lavagem de dinheiro e tráfico internacional de armas, drogas e
seres humanos.
DO CZAR AO COMUNISMO
O crime organizado russo ganhou visibilidade na década de 1990,
mas já vinha de muito antes. Suas origens remontam ao século 17, quando boa
parte da Rússia imperial era habitada por bandidos comuns. “Como todos os bens
pertenciam ao czar, o roubo não era só um crime – era um ato de revolta contra
o Estado”, diz o pesquisador Stephen Handelman no livro Comrade criminal (sem
tradução no Brasil).
Os bandidos organizaram-se em gangues nos séculos seguintes, mas foi
somente após a revolução comunista, em 1917, que eles emergiram no chamado
voroskoy mir (mundo do crime). Tratava-se de um exército de milhares de
criminosos, com códigos de conduta próprios e cuja aristocracia era chamada de
vory v zakone (algo como “ladrões em lei”).
A partir dos anos 30, vários vory foram presos nos campos de
trabalho forçado soviéticos, os gulags, onde exibiam uma estrela de 8 pontas
tatuada no peito, além de outros desenhos que indicavam o tempo atrás das
grades e o poder entre a bandidagem. Ao mesmo tempo, boa parte dos funcionários
do governo soviético – a chamada nomenklatura – desenvolveu laços estreitos com
o mundo dos ladrões. Enquanto a população sofria com a carência de produtos
básicos, membros do Partido Comunista abusavam da corrupção e embolsavam parte
dos lucros do mercado negro. “O gigantesco aparato estatal permitia e
encorajava o crime, pois também se beneficiava dele”, afirma Finckenauer.
PAÍS DE MAFIOS
Com o colapso da URSS, em 1991, a simbiose entre o submundo e o mundo
legal ficou ainda mais evidente. Aproveitando a falta de regras do processo de
privatização, grupos de crime organizado apoderaram-se de parte das riquezas
das ex-repúblicas, e muitos diretores de estatais tornaram-se oligarcas da
noite para o dia. Yulia Tymoshenko, atual primeira-ministra da Ucrânia, virou
magnata dirigindo a empresa Yedyni Energosystemy Ukrayiny, que importa gás da
Rússia. Ela tinha ligações com o ex-primeiro-ministro ucraniano Pavlo
Lazarenko, condenado nos EUA por lavagem de dinheiro e eleito pela
Transparência Internacional o 8º líder mais corrupto da história recente.
Em 1994, o presidente Boris Yeltsin declarou que a Rússia era “o
país mais mafioso do mundo”, mas os problemas só começavam. Com a
desmobilização do Exército Vermelho, muitos militares voltaram-se para o
contrabando de armas. E não foi só isso: antigos membros da KGB e das Spetsnaz
(unidades de operações especiais soviéticas) passaram a assessorar as gangues
sobre inteligência e táticas de ação encoberta. Hoje, é comum ver ex-espiões da
KGB, ocupando altos cargos em bancos, realizando as atividades ilícitas que
eles costumavam combater.
Apesar de ser menos importante que em países como os EUA, a etnia
é outro fator que caracteriza alguns grupos do ROC. Os chechenos, por exemplo,
atuam nas máfias Tsentralnaya e Ostankinskaya; já os russos são maioria na
Soltsenskaya e na Podolskaya, inimigas das chechenas. Sem falar das máfias de
imigrantes ilegais que atuam dentro da Rússia, como chineses, coreanos e
vietnamitas.
EMPRESAS BLINDADAS
“A aliança entre a antiga elite do Partido Comunista, membros dos
aparatos de segurança e gangues de crime organizado é o elemento mais
pernicioso do crime na pós-URSS”, diz Louise Shelley, diretora do Centro sobre
Terrorismo, Crime Transnacional e Corrupção (TRACCC) da Universidade George
Mason. Como boa parte da economia desses países não é declarada, também fica
difícil saber os limites entre negócios legais e ilegais. Mogilevich foi detido
junto com Vladimir Nekrasov, dono da empresa de cosméticos Arbat Prestige – que
também acabou preso. E por aí vai.
O principal “serviço” prestado pelas máfias russas é a proteção
aos empresários. A forma de proteção mais comum é a krysha (telhado), ou seja,
a blindagem da empresa contra a infiltração de outros mafiosos. Como disse um
criminoso russo em 1996 ante uma comissão do Senado americano: “Você tem de
fazer duas coisas para ter sucesso nos negócios em Moscou – pagar os
funcionários certos do governo debaixo da mesa e comprar uma krysha”.
É nesse cenário que o presidente russo Vladimir Putin tenta pôr
ordem na casa. Ele vem lançando batalhas judiciais contra oligarcas – entre
eles o barão do petróleo Yuri Nikitin, que escapou para a Inglaterra, e o
magnata da vodca Yuri Shefler. Essas atitudes podem ser entendidas dentro da
estratégia maior de Putin de recuperar a hegemonia russa e devolver ao Estado
os lucros obtidos com a privatização. Por outro lado, seu regime autoritário
não ajuda muito. Várias mortes misteriosas parecem ter as impressões digitais
do Kremlin, como a da jornalista Anna Politkovskaya e a do ex-agente russo
Alexander Litvinenko – envenenado com polônio na Inglaterra.
Os grupos mafiosos da Rússia e das ex-repúblicas soviéticas não
param de se espalhar pelo mundo – principalmente na Europa, nos EUA, em Israel,
no Canadá e na Austrália.
Ninguém sabe ao certo qual é a dimensão atual do crime organizado
russo. As estimativas variam de apenas 25 a mais de 5 mil grupos, até porque
não existe na lei russa (assim como em outros vários países) uma definição para
crime organizado. “Creio que algo entre 40 e 50 grupos seria a aproximação mais
correta para a Rússia”, diz James Finckenauer, professor da Escola de Justiça
Criminal da Rutgers University, nos EUA. Segundo o especialista em crime
organizado, esses grupos controlam pelo menos 40% da economia do país.
Não há estatísticas seguras para o tamanho das organizações
mafiosas nas outras ex-repúblicas soviéticas. Mas o certo é que esses grupos
não param de se expandir tanto na ex-URSS quanto no resto do mundo,
principalmente na Europa, nos EUA, em Israel, no Canadá e na Austrália.
Relatórios da Interpol indicam que organizações criminosas como a Poldolskaya e
a Tambovskaya, entre outras, já operam no México, com prostituição, drogas e
roubo de carros. Segundo a agência privada de inteligência Stratfor, há
indícios de que os mafiosos russos também estejam ligados à Cosa Nostra, à
Camorra, aos traficantes da Colômbia, à Yakuza e às Tríades chinesas.
O o crime
na ex-URSS
As máfias
das antigas repúblicas soviéticas fazem de tudo um pouco: do contrabando de
armas ao tráfico de mulheres
BÁLTICO
As máfias da Estônia, Letônia e Lituânia são cada vez mais
atuantes na Europa ocidental. Elas financiam partidos políticos, controlam a
produção de bebidas e extorquem empresas. Ao entrar para a União Européia, em
2004, esses 3 países serviram como um cavalo-de-tróia do crime organizado.
Ficou mais fácil, por exemplo, mandar imigrantes ilegais para os países
escandinavos.
CÁUCA
As máfias caucasianas são cada vez mais influenciadas pelo
radicalismo islâmico. Laços étnicos e nacionais imperam em boa parte das
gangues na Geórgia, Armênia, Azerbaidjão e Chechênia. Em geral, elas estão
envolvidas em tráfico de drogas e armas, seqüestros e lavagem de dinheiro. A
mais famosa é a chechena Obshina, cujos lucros financiam grupos separatistas e
terroristas.
BIELO-RÚSSIA
Uma especialidade das máfias bielo-russas é o tráfico de mulheres
no sistema “carrossel”: elas são enviadas para bordéis de um determinado país,
passam um tempo lá e depois seguem para outro lugar – garantindo, assim, uma
oferta permanente de novos “produtos”. Os mafiosos da Bielo-Rússia também
faturam alto com fraudes bancárias, empresas fictícias e contrabando de armas.
UCRÂNIA
Fronteiras porosas e localização estratégica, entre Ásia e Europa,
fizeram da Ucrânia o paraíso do crime organizado. As máfias controlam a
exploração de recursos naturais, bancos, empreiteiras, comércio de armas e
tráfico de drogas. Estima-se que 60% da economia do país não sejam declarados –
e que boa parte desse mercado informal esteja nas mãos de organizações
mafiosas.
ÁSIA CENTRAL
O crime organizado na Ásia Central faz o elo entre o tráfico de
drogas e o terrorismo. A guerra do Afeganistão ajudou a consolidar o mercado
para a narcomáfia daquela região, formada por grupos principalmente do
Tadjiquistão, Cazaquistão e Uzbequistão. Com o dinheiro gerado pela venda do
ópio afegão, eles compram armamentos e selam negócios com a Al-Qaeda e o
Talibã.
RÚSSIA
Altamente sofisticadas, as máfias russas faturam principalmente
com tráfico de armas e drogas, lavagem de dinheiro, roubo de carros, seqüestro
e prostituição. Outra fonte de receita são as taxas de proteção cobradas de
cerca de 70% das empresas russas. O alcance da organização é global e seus
membros são variados: de cientistas e ladrões da era soviética a ex-integrantes
do Exército e da KGB.
40% DA ECONOMIA
Russa são controlados por organizações criminosas de ex-repúblicas
soviéticas.*
70% DAS EMPRESAS
Da Rússia são obrigadas a pagar taxas de proteção para grupos
mafiosos.*
6 MIL INTEGRANTES
Da máfia ucraniana estão concentrados apenas na cidade portuária
de Odessa.*
3 MIL DÓLARES
É o valor que um imigrante ilegal paga à máfia lituana para
ingressar na Europa.*
* Fonte: Centro sobre Terrorismo, Crime transnacional e Corrupção
(Traccc).
Você
talvez nunca tenha ouvido falar de Ekaterimburgo. Encravada nos montes Urais,
entre a Europa e a Ásia, essa cidade é o maior pólo industrial da Rússia, com
1,5 milhão de habitantes. Foi lá que o ex-presidente russo Boris Yeltsin nasceu
e que os bolcheviques fuzilaram o czar Nicolau II, em 1918, após a revolução
comunista. Hoje, ela é mais conhecida por uma onda desenfreada de assassinatos,
que lhe valeu o título de “capital do crime” na Rússia.
O principal foco da violência é a companhia Uralmash, um gigante
da indústria pesada que tem sido parcialmente controlado por mafiosos – tanto
que o maior grupo criminoso da cidade também se chama Uralmash. Na década de
1990, esse pessoal realizava fraudes e contrabando de metais, além de negócios
que englobavam times de futebol, restaurantes, lojas de carros e hotéis.
“Hoje, a rede Uralmash representa um novo tipo de organização que
domina o crime organizado na Rússia. Ela geralmente ignora o velho código dos
vory v zakone, mas emprega disciplina e subordinação a sua liderança. Em vez de
procurar os vory ou outros bandidos profissionais como membros, ela recruta
antigos atletas e policiais”, explica James Finckenauer. O cemitério da cidade
já ficou famoso por abrigar corpos de mafiosos e suas vítimas. Uma delas é Oleg
Belonenko, ex-diretor da Uralmash, que morreu com um tiro na cabeça no caminho
para o trabalho.
Texto Eduardo Szklarz