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terça-feira, 4 de outubro de 2016

A HISTÓRIA SOB OUTRAS PERSPECTIVAS: BIOGRAFIA DE MAHOMMAH GARDO BAQUAQUA



A abordagem do regime escravista no Brasil aparece em boa parte dos livros didáticos a partir de eventos históricos como a Lei Eusébio de Queiróz ( 1850) que estabelecia o “fim” com o tráfico negreiro, a Lei do Ventre Livre (1871) que dava liberdade aos filhos de escravos nascidos a partir da data de sua aprovação (28/09/1871) e a Lei dos Sexagenários (1885) que garantia liberdade aos escravos com mais de 60 anos de idade. Trata-se de uma produção que dá destaque a personagens como Princesa Isabel ou abolicionistas como o poeta Castro Alves e que não se volta para a história e as particularidades dos povos escravizados, suprimidos em várias dessas narrativas. 

 

O método histórico utiliza documentos cartográficos, cartas, mapas, fotografias, leis, decretos, etc; como fontes históricas. Foi a partir de documentos oficiais, relatos de viajantes, padres e colonos que elementos importantes desse período histórico puderam ser resgatados. O que muitos não sabem é que existe um relato direto – o único descoberto até hoje – de alguém que foi escravizado no Brasil, conseguiu sua liberdade, escreveu a própria biografia e se engajou na luta abolicionista: Mahommah Baquaqua. Feito em primeira pessoa, esse relato é extremamente relevante para a construção da história do Brasil e para a História enquanto disciplina. O relato completo está disponível na Revista Brasileira de História. Gostaria de compartilhar com vocês algumas das passagens que mais me marcaram. 
A  perspectiva de um ex-escravo: a passagem de Mahommah Baquaqua pelo Brasil
A tradução da biografia de Mahommah Gardo Baquaqua, foi noticiada recentemente em vários jornais pelo Brasil e pelo mundo. O texto original foi publicado em Detroit em 1854 sob o título Biography of Mahommah G. Baquaqua: A native of Zoogoo in the interior of Africa
Baquaqua vivia no norte da África, era filho de um comerciante e adquiriu conhecimentos sobre leitura numa escola islâmica. Baquaqua teria sido escravizado pela primeira vez pelo Império Ashanti, enquanto atuava no comércio de grãos. Baquaqua foi comprado e liberto pelo irmão, mas tempos depois foi novamente preso e conduzido para Uidá, onde embarcaria num navio e seria transportado como escravo para o Brasil, por volta de 1845. O trecho inicial desse texto que relata a passagem pelo Brasil foi traduzido por Sonia Nussenzweig e publicado no  Revista Brasileira de História
Os primeiros parágrafos revelam um aspecto cultural bastante importante relatado por Baquaqua: o modo como as diferentes nações se diferenciavam através do corte de cabelo:
[…] Na África, as nações das distintas partes do território têm seus modos diferentes de cortar o cabelo e são conhecidas, por essa marca, a que parte do território pertencem. Em ZooGoo, o cabelo de ambos os lados da cabeça é raspado e, em cima da cabeça, da testa até atrás, deixa-se o cabelo crescer em três mechas redondas que ficam bem compridas mantendo-se os espaços entre elas raspados rente à cabeça. Para alguém familiarizado com os diferentes cortes, não há dificuldade para reconhecer a que lugar um homem pertence. (BAQUAQUA, 1988, p.270) 
Baquaqua menciona esse fato ao descrever seu encontro com um conterrâneo enquanto estava de passagem por uma vila e era levado para rio. Os últimos momentos de Baquaqua na África, o caminho percorrido até alcançar o litoral e o embarque no navio aparecem logo em seguida. 
O barco em que os escravos foram colocados era grande e impulsionado por remos, embora também tivesse velas. No entanto, como o vento era não era suficientemente forte, tinha-se que usar também os remos. Estávamos há duas noites e um dia nesse rio, quando chegamos a um lugar bonito, cujo nome não me lembro. Não ficamos ali por muito tempo, tão logo os escravos foram reunidos e o navio estava pronto a velejar, fizemo-nos ao mar. Enquanto estivemos nesse lugar os escravos foram enjaulados, colocaram-nos de costas para a fogueira e deram ordens para não olharmos à nossa volta. Para se assegurar da nossa obediência um homem se postou à nossa frente com um chicote na mão pronto para açoitar o primeiro que ousasse desobedecer; outro homem circulava com um ferro quente e nos marcava como tampas de barril ou qualquer outro bem ou mercadoria inanimada. Quando estávamos prontos para embarcar, fomos acorrentados uns aos outros e amarrados com cordas pelo pescoço e assim arrastados para a beira-mar. O navio estava a uma distância da praia. Nunca havia visto um navio antes e pensei que fosse algum objeto de adoração do homem branco. Imaginei que seríamos todos massacrados e estávamos sendo conduzidos para lá com essa intenção. Temia por minha segurança e o desalento se apossou quase inteiramente de mim. (BAQUAQUA, 1988, p.271)
Baquaqua relata a morte de 30 pessoas (provavelmente todos escravos) numa tentativa de passagem de uma pequena embarcação para o navio, antes que ele fosse embarcado. Em seguida, fala sobre os horrores dos navios negreiros.
Fomos arremessados, nus, porão adentro, os homens apinhados de um lado, as mulheres do outro. O porão era tão baixo que não podíamos ficar em pé, éramos obrigados a nos agachar ou sentar no chão. Noite e dia eram iguais para nós, o sono nos sendo negado devido ao confinamento de nossos corpos. Ficamos desesperados com o sofrimento e a fadiga. […] A única comida que tivemos durante a viagem foi milho velho cozido. Não posso dizer quanto tempo ficamos confinados assim, mas pareceu ser muito tempo. Sofríamos muito por falta de água, que nos era negada na medida de nossas necessidades. Um quartilho por dia era tudo que nos permitiam e nada mais. Muitos escravos morreram no percurso. Houve um pobre companheiro que ficou tão desesperado pela sede que tentou apanhar a faca de um homem que nos trazia água. Foi levado ao convés e eu nunca mais soube o que lhe aconteceu. Suponho que foi jogado ao mar. Quando qualquer um de nós se tornava rebelde, sua carne era cortada com faca e o corte esfregado com pimenta e vinagre para torná-lo pacífico (!). […] Alguns foram jogados ao mar antes que o último suspiro exalasse de seus corpos; quando supunham que alguém não ia sobreviver, era assim que se livravam dele. Apenas duas vezes nos permitiram subir ao convés para que pudéssemos nos lavar  – uma vez enquanto estávamos em alto mar, e outra pouco antes de entrarmos no porto (BAQUAQUA, 1988, p.272-273)
Baquaqua foi levado para Pernambuco. O texto narra o papel de intérprete que alguns escravos exerciam no mercado de escravos nesse local. Com eles, Baquaqua aprendeu a falar “um pouco de português”. Baquaqua foi vendido e revendido posteriormente a um padeiro que lhe impôs uma pesada rotina de trabalho, além da obediência a rituais religiosos cristãos.  (p.272)
Quando este homem me comprou ele estava construindo uma casa. Era necessário buscar pedras para construção a uma distância considerável, do outro lado do rio, e fui forçado a carregá-las. Eram tão pesadas que três homens foram incumbidos de erguê-las e colocá-las sobre minha cabeça, fardo que era obrigado a sustentar por pelo menos um quarto de milha, até o local onde se encontrava o barco”. (BAQUAQUA, 1988, p.273)
Baquaqua ficou encarregado da venda de pães e após contínuas punições, tentou fugir. Em seguida, tentou suicidar-se sem êxito. Após ser espancado pelo homem que até então era seu senhor, foi levado à cidade e vendido para um traficante. Algumas semanas depois, Baquaqua foi levado ao Rio de Janeiro e vendido para um capitão de navio. Num breve parágrafo, Baquaqua lembra que um “homem de cor” havia demonstrado interesse em sua compra mas a venda não foi concretizada.
No navio realizava tarefas tais como polir peças de bronze. Aos poucos assumiu mais responsabilidades, tornando-se camareiro. Baquaqua viajou por várias localidades e presenciou as diversas trocas feitas nos mercados. Sofreu também nesse período uma série de espancamentos. (p.276-277) Durante uma viagem, o capitão – e seu senhor – foi contratado para transportar a carga de café de um mercador inglês para Nova York. A idéia de acompanhar seu senhor e desembarcar numa “terra livre”, é relatada com euforia por Baquaqua.
Como era belo o resplandecer do sol naquela manhã memorável, a manhã da nossa partida para a terra da liberdade sobre a qual tanto havíamos ouvido falar. Os ventos também estavam favoráveis, logo as velas se desfraldaram diante da brisa animadora e nosso navio rumou para aquela terra feliz. Durante aquela viagem, as obrigações do serviço pareciam leves, na verdade, em antecipação à visão daquela terra grandiosa e absolutamente nada me perturbava. Obedeci todas as ordens de bom grado e com vivacidade. (BAQUAQUA, 1988, p.279)
Algumas linhas depois, Baquaqua relata mais uma entre as várias situações apresentadas na autobiografia, em que ele enfrentou de algum modo seu senhor. Toda a cena de violência a seguir se desenvolveu porque durante uma tempestade, Baquaqua não conseguiu acender a lâmpada do navio. 
O capitão saiu de sua cabine, vestiu-se e mandou-me acender sua lâmpada; quando fui atendê-lo, ele apanhou uma vara grossa para me bater e, apontando um golpe em minha cabeça, levantei o braço para que ela não fosse atingida, ele me disse para manter minha mão abaixada. Eu obedeci, mas quando o golpe descia, eu levantei a mão novamente e consegui salvar meu crânio de ser rachado; ele não queria acertar minha mão pois isso me impediria de fazer meu trabalho, mas estando ou não com minha cabeça quebrada, teria que dar conta de meu serviço rotineiro. Então me disse para dar meia volta para que pudesse bater-me por trás. Eu lhe disse para me bater o quanto quisesse.  Ele estava enfurecido e batia a esmo em minha cabeça e corpo, onde porventura acertasse. Eu o desafiei a fazer pior, a fazer o que pudesse para tirar sua mais completa vingança numa pessoa miserável como eu. Ele então chamou três imediatos e lhes ordenou que me amarrassem no canhão. Pensei em me jogar na água, mas não me sentia plenamente satisfeito com a perspectiva de ir sozinho; se pudesse ter o prazer de levá-lo comigo, teria me jogado de bom grado. O três homens me agarraram e me prenderam de bruços sobre o canhão; foram ordenados a açoitar-me, o que fizeram com bastante diligência; então ele exigiu que eu me submetesse e implorasse por misericórdia, mas isso eu não faria. Eu disse a ele para me matar se assim o quisesse, mas por misericórdia em suas mãos eu não iria implorar! Também lhe disse que quando me desatassem do canhão, ele deveria se cuidar; naquele dia, enquanto examinava meu corpo dilacerado sangrando, refleti que, embora estivesse machucado e despedaçado, meu coração não estava subjulgado. Assim que me desataram avancei em direção ao capitão, que deu ordens aos homens para me prenderem na proa do navio e não deixarem que eu me aproximasse dele novamente. Os cortes e os machucados me deixaram tão dolorido que não consegui fazer nada por dias. (BAQUAQUA, 1988, p.280)
As relações estabelecidas entre Baquaqua e seus senhores são bastante complexas. A esposa do capitão mostrava-se cruel ou piedosa, dependendo da situação. Após a violência narrada no parágrafo citado, Baquaqua diz que o capitão lhe enviava “boas provisões de sua própria mesa”, para conciliar-se com ele.
Ao desembarcar nos EUA, Baquaqua tenta fugir e chega a deixar o navio, sendo logo em seguida levado à prisão. Posteriormente teve suas despesas pagas e foi levado de volta ao navio. No entanto, dois dias depois, numa segunda feira, oficiais foram até a embarcação.
Eles andavam de um lado para o outro do convés conversando com o capitão, dizendo-lhe que todos a bordo eram livres e exigindo que ele hasteasse a bandeira. Ele enrubesceu um bocado e disse que não o faria, enfureceu-se e esbravejou muito. Fomos, posteriormente, levados em suas carruagens, acompanhados pelo capitão, a um prédio muito bonito com um pórtico esplêndido na parte da frente. […] Quando chegamos ao salão do prédio este estava apinhando de gente de todos os tipos, e um grande número de pessoas estavam em pé, próximo às portas e às escadarias, e espalhas pelo pátio. O cônsul brasileiro estava lá e quando fomos chamados, perguntaram-me se desejávamos permanecer ali ou voltar para o Brasil. Respondi pelo meu companheiro e por mim que nós não desejávamos voltar, mas a escrava que estava conosco disse que ela voltaria. Não tenho dúvidas de que ela preferia ficar mas, vendo o capitão ali, ficou intimidada e teve medo de dizer o que pensava, e o meu companheiro também. Eu, por outro lado disse audaciosamente que preferia morrer do que voltar ao cativeiro!” (BAQUAQUA, 1988, p.283)
A tradução do documento se encerra alguns parágrafos depois, indicando a necessidade de uma nova fuga e a ida para o Haiti, onde permaneceu por dois anos e se converteu ao cristianismo. Todo o relato de Baquaqua expressa uma fé cristã adquirida a partir desse período. Baquaqua voltaria aos EUA em 1850, onde estudou e participou ativamente da luta abolicionista.
Ele converteu-se ao cristianismo em 1848. Durante quase três anos (1850-53), freqüentou o Central College, em McGrawville, Estado de Nova Iorque, onde, depois de mudar-se para o Canadá Oeste (Ontário), ele tomou as providências visando a publicação de sua história, em Detroit, em 1854. Viajou para Liverpool em janeiro de 1855, e a última notícia que temos dele data de 1857, na Grã-Bretanha, aguardando os resultados dos esforços de seus amigos missionários para levantar fundos, a fim de mandá-lo de volta para a África.  (LOVEJOY, 2002, p.12)
As interpretações da história
Diante dessa autobiografia surgem múltiplas interpretações possíveis, assim o desafio do método de análise de narrativas como essa se coloca. Baquaqua era detentor de uma série de conhecimentos sobre mercado e matemática. Sua família possuía grande envolvimento com o comércio, seu pai havia sido um grande comerciante, a mãe provinha da cidade de Katsina, um grande centro comercial. O irmão era ferreiro. (Lovejoy, p.19) O conhecimento de Baquaqua teve papel importante para que ele auxiliasse seus senhores. Pode-se imaginar que esses conhecimentos tenham sido relevantes para a própria sobrevivência de Baquaqua já que num dos trechos da autobiografia ele destaca que era considerado um escravo “rentável”. Estamos tratando portanto, de um relato que tem como fonte um homem africano que sabia ler e escrever, que conhecia o comércio, que estudou numa escola alcorânica e que se converteu ao cristianismo quando voltou aos EUA.
Num dos trechos da autobiografia, Baquaqua cita a existência de um “homem de cor” que manifestou o desejo de comprá-lo. Em seguida, Baquaqua opina sobre a existência de homens negros que escravizam homens negros considerando que a posse de dinheiro permite que qualquer homem escravize o outro. Assim, segundo ele, “um homem negro escravizaria seu semelhante tão prontamente quanto o homem branco, tivesse ele o poder”. O relato de Baquaqua sobre as relações de escravidão entre homens negros contribui para várias discussões recentes sobre o tema. As relações de posse e a manutenção de status de poder como parte da mentalidade da época tem sido parte das considerações feitas sobre esse debate.
A história de Mahommah Gardo Baquaqua abre espaço para os estudos de ponto de vista até então desconhecido: a narrativa de alguém que foi escravizado no início do século XIX. O relato de Baquaqua tem sido utilizado por parte de pesquisadores e professores para discutir nas instituições escolares a resistência ao regime escravocrata, contribuindo para combater a concepção dos africanos escravizados como figuras passivas. O documentário “Baquaqua: comum e extraordinário”, produzido em 2012 e dirigido por Adriana Maria Paulo da Silva, destaca falas de professores da Rede Estadual de Pernambuco que expressam a importância da autobiografia para o compreensão do escravismo africano e brasileiro. As falas destacam ainda que o relato de Baquaqua é interessante na medida em que chama a atenção dos alunos para os feitos históricos produzidos por “pessoas comuns”, além de expressar a possibilidade de compreensão de um contexto histórico a partir da narrativa de um indivíduo que é produto daquele cenário.
Para pensarmos a história, é necessário também pensarmos o contexto em que ela esta sendo produzida. Qual seria a importância da autobiografia de Baquaqua, nos dias de hoje? É  importante notar que a descoberta e tradução da autobiografia pode representar uma mudança futura nos livros didáticos. O passado é continuamente reconstruído a partir das análises históricas e científicas e nessa medida, a descoberta de relatos como esse é absolutamente relevante.

Seguem abaixo dois vídeos sobre a história de Mahommah Baquaqua, fruto da dedicação de pesquisadores da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).




Bibiliografia
BAQUAQUA, Mahommah Gardo. Biografia de Mahommah G. Baquaqua.  Apresentação de Silvia Hunold Lara. Tradução Sonia Nussenzweig.  Revista Brasileira de História – Escravidão, ANPUH, Marco Zero, março/agosto, 1988, volume 08 n.16.  Disponível em: <http://www.anpuh.org/revistabrasileira/view?ID_REVISTA_BRASILEIRA=25> Último acesso em: 01/12/2015
LOVEJOY, Paul E.. Identidade e a miragem da etnicidade: a jornada de Mahommah Gardo Baquaqua para as américas. Afro-Ásia, 27 (2002), 9-39. Disponível em: <http://www.afroasia.ufba.br/pdf/27_7_identidade.pdf> Último acesso em: 01/12/2015
PROST, Antoine, Doze lições sobre a história. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2008.
WOODS, Ellen. O que é a agenda pós moderna? in: Em defesa da história: marximos e pós-modernismo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999.
*Texto adaptado. Redigido originalmente por Maressa de Sousa e Elisa Libânio para trabalho de conclusão de disciplina.


Mudança para o calendário gregoriano


Inglês: Certificado de união de 1907
Documento original no idioma russo, datada usando ambos estilo velho e novo estilo datas em Varsóvia (então parte do Império Russo). Certificado com data de Novembro / Dezembro de 23/6 de 1907; o casamento datada de Outubro de 1907 3/16.


Denomina-se calendário gregoriano o calendário promulgado pelo Papa Gregório XIII em 1582 e adoptado imediatamente porEspanha, Itália, Portugal, Polónia e, posteriormente, por todos os países ocidentais.
A mudança do calendário juliano ou antigo para o calendário gregoriano ou moderno não teve lugar ao mesmo tempo em todo o mundo, o que causa uma certa confusão na harmonização de datas e na datação de eventos entre os séculos XVI e XX.

O ajustamento do calendário gregoriano

Em 1582, o Papa Gregório XIII, aconselhado pelos astrónomos, decretou pela bula Inter gravissimas que quinta-feira4 de Outubro de 1582 seria imediatamente seguido desexta-feira 15 de Outubro para compensar a diferença acumulada ao longo de séculos entre o calendário juliano e as efemérides astronómicas.

Introdução da descontinuidade

Aprovado pelo Papa Gregório XIII e adotado pelos estados católicos, o calendário gregoriano foi imediatamente adaptado em EspanhaItáliaPortugal e Polónia. Em França,Henrique III decreta o ajuste dos dias em Dezembro.
Grã-Bretanha e os países protestantes apenas adaptaram o novo calendário no século XVIII, preferindo, segundo o astrônomo Johannes Kepler, "estar em desacordo com o Sol a estar de acordo com o Papa". A adoção do calendário na Grã-Bretanha e suas colónias em 1752 foi pretexto para protestos e motins porque muitos pretendiam receber o seu salário mensal em vez da correcta proporção de 21 dias de trabalho efectivos.
Os países da tradição ortodoxa apenas o adoptaram no início do século XX. Na Rússia, só após a Revolução de Outubro de 1917, que segundo o calendário gregoriano ocorreu já em Novembro, é que a recém-formada URSS adoptou o calendário gregoriano, em 1918.

Dias de diferença

Indicam-se de seguida as omissões de dias devidas à mudança de calendário (necessárias para implementar o novo esquema):
  • Até Março de 1700: 10 dias omitidos (como em 1582; porque 1600 foi ano bissexto)
  • De Março de 1700 a Fevereiro de 1800 : 11 dias omitidos (não existiu o dia 29 de Fevereiro de 1700)
  • De Março de 1800 a Fevereiro de 1900 : 12 dias omitidos (não existiu o dia 29 de Fevereiro de 1800)
  • De Março de 1900 a Fevereiro de 2100 : 13 dias omitidos (não existiu o dia 29 de Fevereiro de 1900 ; 2000 foi porém bissexto)
As mudanças do calendário modificaram apenas as datas e não os dias da semana, por exemplo a quinta-feira 4 de Outubro de 1582 é seguida da sexta-feira 15 de Outubro.

Data da mudança para o calendário gregoriano por país

Albânia 
em Dezembro de 1912
Alemanha 
Segundo os estados em diferentes datas:
Áustria 
diferentes regiões em diferentes datas:
ver também Checoslováquia e Hungria
Bélgica (fazia parte dos Países Baixos)
21 de Dezembro de 1582 é seguido de 1 de Janeiro de 1583
Bulgária 
31 de Março de 1916 é seguido de 14 de Abril de 1916
Canadá 
diferentes zonas mudaram em diferentes datas:
Checoslováquia (i.e. Boémia e Morávia)
6 de Janeiro de 1584 é seguido de 17 de Janeiro de 1584
República da China 
em 1912 e em 1929, consoante a autoridade decisora
Dinamarca (incluindo a Noruega)
18 de Fevereiro de 1700 é seguido de 1 de Março de 1700
Egipto 
em 1875
Espanha e suas colónias 
4 de Outubro de 1582 seguido por 15 de Outubro de 1582
Estónia 
em 1918
Estados Unidos da América 
Diferentes zonas mudaram em diferentes momentos:
Finlândia 
ver Suécia (fazia parte da Suécia)
A Finlândia fez parte da Rússia, que utilizava ainda o calendário juliano. O calendário gregoriano era oficial na Finlândia apesar de se usar também o calendário juliano.
França 
9 de Dezembro de 1582 é seguido de 20 de Dezembro de 1582
Grã-Bretanha e colónias
Grécia 
9 de Março de 1924 é seguido de 23 de Março de 1924 (outras fontes citam 1916 e 1920)
Hungria 
21 de Outubro de 1587 é seguido de 1 de Novembro de 1587
Irlanda 
Ver Grã-Bretanha
Itália 
4 de Outubro de 1582 é seguido de 15 de Outubro de 1582
Japão 
O calendário gregoriano foi introduzido como adição do calendário tradicional em 1 de Janeiro de 1873
Jugoslávia 
em 1919
Letónia 
Durante a ocupação alemã de 1915 a 1918
Lituânia 
em 1915
Luxemburgo 
14 de Dezembro de 1582 é seguido de 25 de Dezembro de 1582
Noruega 
ver Dinamarca.
Países Baixos (incluindo a Bélgica)
Polónia 
4 de Outubro de 1582 é seguido de 15 de Outubro de 1582
Portugal e Império Português (incluindo o Brasil
4 de Outubro de 1582 é seguido de 15 de Outubro de 1582
Roménia 
31 de Março de 1919 é seguido de 14 de Abril 1919 (A parte Ortodoxa mudou posteriormente)
Rússia 
31 de Janeiro de 1918 é seguido de 14 de Fevereiro de 1918. A Rússia continuou a usar o calendário juliano até à Revolução Russa, que se chamou assim revolução de Outubro mas ocorreu em Novembro segundo o calendário gregoriano. Na parte Este do país a mudança só foi feita em 1920.
Suécia (incluindo Finlândia)
17 de Fevereiro de 1753 é seguido de 1 de Março de 1753 (a Suécia utilizou sua própria variante do calendário juliano (que inclusive tinha o dia 30 de fevereiro, entre 1 de Março de 1700 e 29 de Fevereiro de 1712).
Suíça 
segundo as regiões:
  • Cantões Católicos: em 1583, 1584 ou 1597
  • Cantões Protestantes: 31 de Dezembro de 1700 é seguido de 12 de Janeiro de 1701 (numerosas variações locais)
Turquia 
mudança do calendário muçulmano para o calendário gregoriano em 1 de Janeiro de 1927

Igreja ortodoxa[editar | editar código-fonte]

As Igrejas ortodoxas do Oriente continuaram a usar o calendário juliano até 1923, quando muitas adotaram o seu próprio calendário juliano revisto em vez do gregoriano. Utilizam ainda o calendário juliano para determinar a data da Páscoa.

Origem: Wikipédia, a enciclopédia livre.

segunda-feira, 3 de outubro de 2016

Saint-Hilaire (Orleans, 4 de outubro de 1779 — Orleans, 3 de setembro de 1853)



Augustin François César Prouvençal de Saint-Hilaire, era botânico francês e em suas viagens percorreu os seguintes estados: Rio de Janeiro, Espírito Santo, Minas Gerais, Goiás, São Paulo, Santa Catarina, Rio Grande do Sul. Conheceu as nascentes do Jequitinhonha e do São Francisco até Rio Claro. Viajou a cavalo ou no lombo de burro, por sertões geralmente de caminhos empoeirados e na maioria das vezes por picadas abertas a facão por seus acompanhantes, ainda que escravos. Só o estado de Minas Gerais visitou três vezes, pois se identificava com seus habitantes. Quando chegou a Goiás ficou 15 meses. 

August, como os outros viajantes do começo do século passado, teve de vencer a escassez de alimentos civilizados, o cansaço e as privações, dormir em ranchos cobertos de palha, habituar-se a rede, transformar mala em cadeira e mesa para as suas anotações, perder o medo dos animais selvagens, suportar mosquitos e dividir a vigília com os demais companheiros de aventura. Para ele, por largos anos, não houve pátria, família ou amigos que falassem o seu idioma. 



Era tratado de tenente-coronel pelos seus colaboradores, e ainda quando as circunstâncias da viagem eram difíceis, a ameaça de abandono era o primeiro argumento. 

Não era difícil a Saint’Hilaire ser visto pelos sertanejos como médico, e por isso era muitas vezes forçado a ensinar remédios, afinal colher plantas era hábito apenas dos médicos e curandeiros, neste país desconhecido. 

Apesar das muitas dificuldades, o botânico se via absolutamente seduzido pela riqueza vegetal, e desta sedução arrancava forças e coragem para seguir viajando. 

Em 1818, havia dois anos que se encontrava de um lado a outro do país, quando lhe falaram das belezas e do inferno do Rio Doce. August, não teve dúvida, colocou-se em marcha na direção do inferno que o povo chamava de Rio Doce no Espírito Santo. Para o botânico o inferno revelara-se um paraíso e descreve: "o rio desliza majestosamente pela floresta das suas bordas". Sentia-se humilhado diante da natureza austera e poderosa: "minha imaginação de algum modo amedronta-se, quando eu penso na floresta imensa, de todos os lados a cercar-me, se estende para o norte muito além do rio Grande, ocupa toda a parte oriental de Minas Gerais, cobre sem interrupção as províncias do Rio de Janeiro, Espirito Santo, São Paulo, Santa Catarina inteira, o norte e o ocidente do Rio Grande do Sul e segue para as Missões ao norte do Paraguai. 

August, como os demais europeus, se horroriza com as queimadas da mata virgem e comenta: "Árvores gigantescas, incendiadas pelo pé, tombavam com fragor, quebrando outras, ainda não atingidas pelo fogo. Depois, sobre o chão em cinzas onde fora a mata virgem, os destroços dos galhos e dos troncos reduzidos a carvão. E tudo isso o sertanejo faz para colher alguns alqueires de milho, arriscando-se pela falta de precaução, a perder uma floresta, como se sem floresta fosse possível haver cultura. A gente simples, deslumbrada com a natureza e crente de nunca lhes faltar as suas dádivas, destroi a floresta como desperdiçavam o ouro extraído das minas." August, como a maioria dos outros viajantes, aponta em sua obra os nossos erros, mas também dá conselhos para corrigi-los. 

Nenhum dos viajantes que percorreram o Brasil mostrou-se como Saint’Hilaire tão capaz de observar seus diversos aspectos, geografia, estatística, agricultura, comércio, arte, vida religiosa, administrativa e judiciária, costumes, usos da gente civilizada e dos índios. 

Sobre a nossa flora escreveu: "Plantas usuais do povo brasileiro e Flora do Brasil Meridional". Sua obra ainda hoje e consultada e citada no ensino de botânica na Sorbone. 

Toda a obra de August foi construída com a intenção de contar às futuras gerações como era a terra fecunda: "Cidades florescentes tomarão o lugar de cabanas miseráveis, onde apenas eu encontrei abrigo, e nesse porvir os seus habitantes hão de ver nos escritos dos viajantes não só como as cidades principiaram, mas também como nasceram os menores lugarejos. Tomadas de espanto as gentes saberão que onde ressoa o ruído dos martelos e das mais complicadas máquinas, só se ouvia outrora o coaxar de batráquios e o canto dos pássaros; onde imensas plantações cobrirem a terra, dantes cresciam árvores, admiráveis muitas delas inúteis pela abundância. Olhando regiões percorridas por locomotivas, talvez por veículos ainda mais possantes, os homens vão sorrir, ao ler que noutros tempos se considerava feliz quem durante um dia inteiro lograva avançar quadro ou cinco léguas." 

Saint’Hilaire volta para a França em 1822, depois de ter sido envenenado por mel de vespa. Com o sistema nervoso profundamente abalado, voltou para buscar alívio no sul da França. Sua primeira obra foi Viagem do Rio a Minas Gerais, publicada em 1830. Do litoral ao distrito Diamantino 1833, Do São Francisco e Goiás 1847 e de São Paulo a Santa Catarina 1851. August de Saint’Hilaire faleceu em 1853 aos 74 anos. Em 1887 foi publicado seu último livro que chama-se do Rio Grande do Sul a Cisplatina. 


OBRAS SELECIONADAS:

  • "História das Plantas Mais Notáveis do Brasil e do Paraguai" . Tradução Cleonice Paes Barreto Mourão. Belo Horizonte: Fino Traço Editora, 2011.
  • "Quadro Geografico da Vegetação Primitiva na Província de Minas Gerais" . Tradução Cleonice Paes Barreto Mourão. Belo Horizonte: Fino Traço Editora, 2011.
  • Viagem ao Espírito Santo e Rio Doce. 1818
  • Viagem pelas províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais. Tradução de Vivaldi Moreira. Edusp/ Itatiaia, 1975.
  • Viagem às nascentes do Rio São Francisco e pela província de Goiás 1º volume . Tradução de Clado Ribeiro de Lessa. São Paulo : Companhia Editora Nacional, 1937.
  • Viagem à província de São Paulo.
  • Viagem a Curitiba e Santa Catarina.
  • Viagem pelo distrito dos diamantes e pelo litoral do Brasil . Tradução de Leonam de Azeredo Pena. São Paulo : Companhia Editora Nacional, 1941.
  • Segunda viagem ao interior do Brasil, Espírito Santo . Tradução: Carlos M. Madeira. São Paulo : Companhia Editora Nacional, 1936.
  • Viagem à comarca de Curitiba (1820) Tradução de Carlos da Costa Pereira. São Paulo : Companhia Editora Nacional, 1964.
  • Viagem à província de Santa Catarina, 1820 . Tradução de Carlos da Costa Pereira. São Paulo : Companhia Editora Nacional, 1936.
  • Viagem ao Rio Grande do Sul (1820-1821) . Tradução de Leonam de Azeredo Pena. 2ª edição, São Paulo : Companhia Editora Nacional, 1939.
  • Segunda viagem do Rio de Janeiro a Minas Geraes e a São Paulo (1822) . Tradução de Afonso d'Escragnolle Taunay. 2ª edição, São Paulo : Companhia Editora Nacional, 1938.